quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Acordei com a voz do meu pai a dizer ó---brigado



Faz hoje 86 anos que o meu pai nasceu. Filho único do meu avô, nasceu de um amor proibido. Um desses amores que, talvez por o serem ou talvez porque sim, crescem mais e mais e dão frutos maiores do que tantos outros consentidos.


Faz hoje 86 anos que o meu pai nasceu, fruto de um amor maior, ou pelo menos mais rebelde, e talvez por isso tenha vindo ao mundo tão cheio dele, tão cheio que com o passar dos anos era amor o que dele brotava, muitas vezes em silêncio, tantas vezes sem ser sequer apercebido porque, para vermos o amor, temos de olhar nos olhos com olhos de ver e o meu pai, no seu silêncio tantas vezes confundido com alheamento, passava quase despercebido nesse amor que brilhava como o sol no olhar que nos deitava.
Faz hoje 86 anos que o meu pai nasceu e 57 dias que partiu.
Quantos dias faltarão para que este vazio parta com ele, também?


Três horas depois de ter escrito este texto, um dos meus alunos entrou na sala com um saco de plástico de onde tirou um bolo, talheres e pratos que dispôs na mesa. No bolo espetou duas velas - um 3 e um 1. Pediram-me que lhes ensinasse a cantar os parabéns em português e eu escrevi no quadro a letra toda, completa, com o Dia de Festa e tudo. Acenderam-se as velas. Cantámos todos. Batemos palmas e o aniversariante apagou as velas.


Insondáveis que são os caminhos de Deus!

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O meu pai




José Tolentino Mendonça, no seu livro O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas, fala, a dada altura, sobre o legado. Qual será o nosso legado aos outros? Pergunta ele e segue dizendo que:

“Quando se fala de heranças, deveria ser claro que as coisas materiais são o aspeto menos importante de uma transmissão que, se for apenas de direitos de propriedade disto ou daquilo, verdadeiramente não se consuma.”

Diz ele que:

“As heranças verdadeiras, aquelas que nos confirmam numa determinada filiação ou linhagem, têm de ser mais amplas e, ao mesmo tempo, mais irredutivelmente pessoais do que a materialidade.”

Diz ainda que:

“Não há maior legado do que uma vida feita dom; e quando isso acontece a vida revela-se no que tem de fundo e flagrante, de grácil e de arrebatador, de esperançoso e possível.”

Diz ainda que:

“Não há maior legado do que transmitir uma dessas centelhas (…) onde o infinito reluza. (…) [quer se tenha chegado a ela] através de uma paixão ou de uma grande dor…”

E foi através de uma grande dor, mas também de uma paixão que as centelhas de amor, de força, de coragem, de esperança e de possível chegaram até nós, que tivemos o privilégio de privar com o meu pai.

O meu pai, que passou mais de metade da vida sem poder mexer metade do corpo, sem poder expressar livremente todos os pensamentos que o assolaram ao longo dos anos – e eu não consigo imaginar maior prisão do que a de estar fechado, preso, no próprio corpo.

Mas ele nunca se rendeu, nunca deixou de amar e de nos fazer sentir amados. Nunca deixou de estar apaixonado, pela minha mãe, por nós, pela vida. Nunca deixou de lutar. Nunca deixou de ser livre porque não há maior liberdade do que aquela que encontramos dentro de nós.

Tinha 42 anos quando teve o AVC e eu lembro-me da força e da determinação dele, da rapidez com que mudou o seu caminho e passou de intelectual a artesão – mesmo só com uma mão, construiu capoeiras, coelheiras, canis. Transformou-se num criador de coisas e mostrou-nos que por muito difíceis que as coisas sejam, elas não deixam de ser possíveis.

Essas são as centelhas que dele recebemos. Esse é o seu legado:

A liberdade.

O amor.

A força.

A coragem.

A gratidão e a alegria. 

A satisfação de estar vivo, independentemente das circunstâncias e, no final, a aceitação do inevitável que eu acreditei que fosse mais lenta. Mais difícil. Mas isso foi só porque, por momentos, me esqueci da sua força, da sua liberdade, da sua determinação. Esquecimento que tentarei que não se repita para que as centelhas que me deixou brilhem cada vez mais e possam ser, como diz Tolentino Mendonça, “fragmentos de infinito” e nos possam, a todos que dele descendemos,  “ligar para lá do espaço e do tempo.”