quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Acordei com a voz do meu pai a dizer ó---brigado



Faz hoje 86 anos que o meu pai nasceu. Filho único do meu avô, nasceu de um amor proibido. Um desses amores que, talvez por o serem ou talvez porque sim, crescem mais e mais e dão frutos maiores do que tantos outros consentidos.


Faz hoje 86 anos que o meu pai nasceu, fruto de um amor maior, ou pelo menos mais rebelde, e talvez por isso tenha vindo ao mundo tão cheio dele, tão cheio que com o passar dos anos era amor o que dele brotava, muitas vezes em silêncio, tantas vezes sem ser sequer apercebido porque, para vermos o amor, temos de olhar nos olhos com olhos de ver e o meu pai, no seu silêncio tantas vezes confundido com alheamento, passava quase despercebido nesse amor que brilhava como o sol no olhar que nos deitava.
Faz hoje 86 anos que o meu pai nasceu e 57 dias que partiu.
Quantos dias faltarão para que este vazio parta com ele, também?


Três horas depois de ter escrito este texto, um dos meus alunos entrou na sala com um saco de plástico de onde tirou um bolo, talheres e pratos que dispôs na mesa. No bolo espetou duas velas - um 3 e um 1. Pediram-me que lhes ensinasse a cantar os parabéns em português e eu escrevi no quadro a letra toda, completa, com o Dia de Festa e tudo. Acenderam-se as velas. Cantámos todos. Batemos palmas e o aniversariante apagou as velas.


Insondáveis que são os caminhos de Deus!

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O meu pai




José Tolentino Mendonça, no seu livro O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas, fala, a dada altura, sobre o legado. Qual será o nosso legado aos outros? Pergunta ele e segue dizendo que:

“Quando se fala de heranças, deveria ser claro que as coisas materiais são o aspeto menos importante de uma transmissão que, se for apenas de direitos de propriedade disto ou daquilo, verdadeiramente não se consuma.”

Diz ele que:

“As heranças verdadeiras, aquelas que nos confirmam numa determinada filiação ou linhagem, têm de ser mais amplas e, ao mesmo tempo, mais irredutivelmente pessoais do que a materialidade.”

Diz ainda que:

“Não há maior legado do que uma vida feita dom; e quando isso acontece a vida revela-se no que tem de fundo e flagrante, de grácil e de arrebatador, de esperançoso e possível.”

Diz ainda que:

“Não há maior legado do que transmitir uma dessas centelhas (…) onde o infinito reluza. (…) [quer se tenha chegado a ela] através de uma paixão ou de uma grande dor…”

E foi através de uma grande dor, mas também de uma paixão que as centelhas de amor, de força, de coragem, de esperança e de possível chegaram até nós, que tivemos o privilégio de privar com o meu pai.

O meu pai, que passou mais de metade da vida sem poder mexer metade do corpo, sem poder expressar livremente todos os pensamentos que o assolaram ao longo dos anos – e eu não consigo imaginar maior prisão do que a de estar fechado, preso, no próprio corpo.

Mas ele nunca se rendeu, nunca deixou de amar e de nos fazer sentir amados. Nunca deixou de estar apaixonado, pela minha mãe, por nós, pela vida. Nunca deixou de lutar. Nunca deixou de ser livre porque não há maior liberdade do que aquela que encontramos dentro de nós.

Tinha 42 anos quando teve o AVC e eu lembro-me da força e da determinação dele, da rapidez com que mudou o seu caminho e passou de intelectual a artesão – mesmo só com uma mão, construiu capoeiras, coelheiras, canis. Transformou-se num criador de coisas e mostrou-nos que por muito difíceis que as coisas sejam, elas não deixam de ser possíveis.

Essas são as centelhas que dele recebemos. Esse é o seu legado:

A liberdade.

O amor.

A força.

A coragem.

A gratidão e a alegria. 

A satisfação de estar vivo, independentemente das circunstâncias e, no final, a aceitação do inevitável que eu acreditei que fosse mais lenta. Mais difícil. Mas isso foi só porque, por momentos, me esqueci da sua força, da sua liberdade, da sua determinação. Esquecimento que tentarei que não se repita para que as centelhas que me deixou brilhem cada vez mais e possam ser, como diz Tolentino Mendonça, “fragmentos de infinito” e nos possam, a todos que dele descendemos,  “ligar para lá do espaço e do tempo.”


domingo, 26 de novembro de 2017

Nós, os Independentes, os Explorados, os dos Recibos Verdes


Fiquei desempregada há 24 anos.

Poderia ter-me deixado ficar. Agarrada a um qualquer subsídio. Inscrita no Centro de Emprego à espera que, do céu, me caísse qualquer coisa.

Poderia ter baixado os braços. Desistido ou, simplesmente, acomodado.

De facto, durante um período de tempo que não recordo qual, usufrui, pela primeira e única vez no decurso da minha vida ativa que começou há 41 anos, do subsídio de desemprego e dediquei o meu tempo a enviar, por carta – na altura ainda o email era uma miragem –, currículos atrás de currículos na esperança de uma resposta. De uma nova oportunidade. Mas, já nessa época, ou particularmente nela, a coisa não corria de feição. Aliás, nem sei já o porquê da extrema dificuldade que acabou por se transformar em impossibilidade de arranjar emprego nesses anos de 1990. Seria a minha formação? Incompleta para uns e excessiva para outros?  Seria a própria conjuntura do país? Teria de voltar atrás na História e, francamente, não estou para isso.

Adiante.

 Emprego nada.

O subsídio acabou e eu decidi voltar a estudar e, em simultâneo, ajudar os mais novos nas matérias que por mim já tinham passado.
No decorrer dos anos acabei por fazer disso a minha profissão e, com a formação adequada, transformei-me numa profissional.

Se arranjei emprego?

Não.

Mais uma vez poderia ter baixado os braços. Ter-me inscrito no Centro de Desemprego e ter requerido um (ou dois, quem sabe…) qualquer subsídio que me permitisse ir vivendo, sem grandes benefícios mas também sem grandes chatices ou contributos.

Não fui por aí.

Lutei, e continuo a lutar, por trabalho. Sou aquilo a que agora se chama, uma empreendedora que trabalha que nem uma condenada merecendo o título de Trabalhadora Independente.

Independente de quê?! De quem?!

Essa é a questão.

Graças a Deus não me falta trabalho e eu, em havendo um buraquinho para preencher, não o recuso.

Trabalho uma média de 48 horas por semana, de trabalho efetivo, e faço cerca de 700 Km, por semana também, uma vez que os meus clientes se encontram espalhados por várias empresas e moradas, o que representa mais de 10 horas de condução.

Como trabalhadora independente, não vejo descontadas no meu IRS nenhuma das despesas que faço para poder trabalhar. Nem gasóleo, nem prestação de carro, nem seguro de acidentes de trabalho – que sou obrigada a ter -, nem comunicações, nem refeições. Nada.

No entanto, sou taxada como se fosse uma empresa!

29,6%, do meu rendimento, vai para a Segurança Social.

25% para as Finanças.

Portanto, mais de metade do meu esforço diário é para pagar impostos diretos. Sim, porque depois ainda temos 23% de IVA em tudo aquilo que compramos! Ou quase tudo.

Não tenho subsídio de férias ou de Natal e ainda nem sequer percebi se tenho direito a baixa médica!

Anteontem desloquei-me ao Centro de Saúde porque preciso de um médico.

Ah! Pois… Marcações só para Janeiro!

Mas se é agora que estou doente!

O que é que faço? Abro os cordões à bolsa e pago a um privado?!

Não sou de protestar, tal como não sou de baixar os braços ou de me encostar. Mas há coisas que revoltam!

Eu ando a trabalhar para quem?! É que para mim não me parece que seja!

Onde andam os outros Trabalhadores Independentes?

Será que sentem o mesmo que eu?

Quem é que nos defende?

Que direitos temos nós, afinal?

À greve não, com certeza, uma vez que só ganhamos quando trabalhamos.

A quê então?!


sábado, 24 de junho de 2017

Debaixo dos lençóis



Foi a minha mãe que me ensinou a fazer a cama: resguardo impermeável, com elásticos que o prendem ao colchão; resguardo de turco, com elásticos aos cantos; lençol de baixo, lençol de cima, de preferência iguais; mais ou menos cobertores, conforme a estação do ano, e colcha.

Quer o lençol de cima quer os cobertores deveriam ficar bem entalados no colchão, para não fugirem durante a noite. Quanto ao lençol de baixo, esse deveria ser irrepreensivelmente esticado, mesmo que isso implicasse duas ou três idas a cada um dos lados da cama. O colchão deveria ser levantado, aos pés e à cabeceira, de forma a prender o máximo de lençol possível. E deveria ser baixado lentamente para que se soltasse apenas o necessário para ficar deitado.

“Quem boa cama fizer, nela se há de deitar”, uma verdade indiscutível sempre que a nossa cama é por nós feita. Mas o que é isso de “boa cama”? Uma cama de lençóis esticados ao limite e que nos prendem os pés se nos quisermos deitar de barriga para cima?

Nunca tal questionei! Bem-mandada, fazia a minha cama tal qual me haviam ensinado e continuava a debater-me todas as noites com a prisão em que ela me deixava, sem saber para onde virar os pés – para fora? para dentro? Quando pensava nos joelhos, decidia que o melhor mesmo seria virá-los para fora, pelo menos contrariava a tendência dos “pés p’ra dentro”. Mas uma coisa é certa – nunca acordei com eles de fora. Tortos sim, mas cobertos. E presos.

Depois vieram os edredões. Toda a gente tinha um. Coisas práticas que, pelo menos durante o Inverno, dispensavam o batalhão de cobertores que acumulávamos em cima – alguns tão pesados que o virar na cama se transformava num exercício de estilo e mestria. Claro que continuei a entalar os lençóis e, desta feita, os edredões. Tudo bem apertadinho por baixo do colchão não fossem fugir e dar liberdade aos pés. Sabe-se lá para onde nos podem levar uns pés em liberdade!

A coisa aliviou um pouco porque o peso de um edredão não se compara àquele de dois cobertores, de papa por exemplo. Mas os pés continuavam lá, presos, sem saberem, coitados, para que lado se haviam de virar.

Até ao dia em que dormi em casa de uma amiga brasileira. Os brasileiros são práticos e, diria eu, descomplicados. O edredão foi colocado em cima da cama sem pruridos com a clara mensagem de que eu era livre de lhe fazer o que bem entendesse e dormir como bem me apetecesse. A minha primeira reação foi entalá-lo aos pés da cama. Mas olhei para a cama do lado e gostei de ver aquela liberdade esvoaçante do edredão, cobrindo-a, simplesmente, sem colcha, sem trabalho, sem prisões.

Foi nessa altura que me atrevi a deixar cair por terra as teorias da minha mãe. Estendi o edredão como quem estende um lençol branco no ar e deixei-o cair sobre a cama. Assim, sem mais nada. Tão simples que a vida é, afinal!

Sim, é verdade que acordei a meio da noite com um pé de fora. Mas não era natural que, depois de tantos anos presos, eles ansiassem por gozar da sua liberdade? Não faz sentido o entusiasmo por tudo o que é novo? Principalmente quando é libertador?

Com o tempo eles habituaram-se à leveza das noites, e dos dias, e agora só espreitam quando lhes apetece. Já não obedecem a ninguém a não ser a si mesmos e eu aprendi a inventar as minhas próprias teorias.


Nunca mais entalei lençóis. Nunca mais entalei edredões ou colchas. Nunca mais entalei ideias, crenças ou vontades – a minha liberdade é total! E de tal forma que se estendeu, ao longo dos anos, para as horas do dia em que os meus pés, finalmente livres, decidem para onde e quando querem ir! Ontem, por exemplo, levaram-me até à praia. Amanhã, quem sabe?! O céu é o limite!

domingo, 29 de janeiro de 2017

Uma questão de Fé


Ele há coisas que todos vimos e há coisas que ninguém vê.

Nada disto é novo e todos estamos plenamente conscientes do facto.

No entanto, raramente estamos de acordo – quer em relação ao que vemos, quer em relação àquilo que não somos capazes de ver.

Isto porque o nosso cérebro interpreta o que os olhos lhe enviam e fá-lo à luz da cultura, do conhecimento, da experiência, qui ça das capacidades de cada um.

No entanto, essa é a realidade pela qual cada um de nós está disposto a morrer (e, muitas vezes, a matar) – aquilo que os nossos olhos veem! Quem é que nunca ouviu a expressão: “Eu vi! Vi com estes olhos que a terra há de comer! E, se eu vi, está visto e ninguém tem o direito de duvidar. E se tu, por um qualquer acaso, viste algo de diferente, então viste mal. Estás enganado”.

É ou não, esta, a atitude generalizada por nós, humanos?

Imagine-se, agora, o que não será em relação àquilo que ninguém vê! É um desentendimento tão grande, mas tão grande, que tem estado, ao longo de séculos, na origem de muitas guerras – ainda que haja quem afirme que essa é a origem da treta porque tudo se resume a interesses bem visíveis. Permitam-me discordar. Pode até ser, e creio bem que é, essa a intenção de quem as provoca – sim, há sempre alguém que provoca as guerras e não é uma mão cheia de gente -, mas aqueles que as alimentam, às guerras, aqueles que realmente as combatem, que se deixam convencer da sua justiça e necessidade, fazem-no para defender aquilo que ninguém vê. Fazem-no em nome da Fé, da Liberdade, da Justiça e de outros valores não palpáveis e relativos às culturas e crenças de cada um.

Relativamente ao que se vê, não vale a pena discutir porque já se percebeu o quão difícil é levar as pessoas a compreender que as interpretações daquilo que os olhos veem se alteram consoante a quantidade e qualidade das variáveis implicadas no processo – tais como a cultura, o conhecimento, e coisas assim…sem importância…(apetece-me ser irónica).

No entanto, relativamente àquilo que não se vê, gostaria de deixar aqui uma ressalva que, valendo pouco por ser minha, é aquela em que acredito: Tanto valor existencial tem a existência como a não-existência de tudo o que não se vê.

Na verdade, a existência de Deus, do espírito, da alma, e por aí fora, bem como a sua não-existência, dependem exclusivamente da Fé. Ter Fé em Deus é acreditar na sua existência e é, portanto, ter Fé na sua existência. Não ter Fé em Deus é não acreditar na sua existência e é, portanto, ter Fé na sua não-existência.

Tudo é, portanto, uma questão de Fé.

E, convenhamos, que tão arreigados são alguns defensores do SIM, como do NÃO. 

Ainda que nenhum deles consiga provar ao outro a sua razão na medida em que ainda não somos totalmente capazes de transformar o invisível em visível. Ainda…

Há contudo, algo que me tranquiliza ao mesmo tempo que me perturba. É que aqueles que SABEM que Deus existe, já o SENTIRAM, de uma forma ou de outra. Já o ENCONTRARAM dentro de si e nos outros. Já COMUNICARAM com Ele. Enquanto aqueles que SABEM que Ele não existe, nunca tiveram contacto com nada que lhes tivesse comunicado isso mesmo. Simplesmente, nunca tiveram contacto com Ele – ou pensam que não tiveram -, e limitam-se a NÃO ACREDITAR. E isto faz uma grande diferença. E faz uma grande diferença porque Ele está dentro de todos e de cada um de nós e só não o SENTE, e só não o ESCUTA, e só não o VÊ quem anda distraído com o imediato, quem anda distraído com o supérfluo, com o temporário. Ou quem faz disso um verdadeiro cavalo de batalha porque acredita que tudo o que é verdade terá de ser reconhecido pela razão.

Nada disto seria problemático se não fosse fonte de tantas discórdias e, sobretudo, de tanta ânsia de aproveitar ao máximo tudo o que há porque um dia acaba e mais vale aproveitar enquanto por cá se anda.

Nada disto seria problemático se não exaltasse o egoísmo e não virasse de pernas para o ar todos os valores que são verdadeiramente HUMANOS – aqueles que nos distanciam dos animais que trazem à flor da pele a necessidade de satisfazer os seus instintos, como o de sobrevivência, e os seus chamados sensoriais.

A diferença. A grande diferença. Entre aqueles que SABEM que Deus existe e aqueles que SABEM que Ele não existe é o comportamento de uns e de outros.

Quem SABE que Deus existe já sentiu o Seu AMOR e SABE que não há nada mais poderoso no Universo que essa LUZ, essa ENVOLVÊNCIA, essa VERDADE que é o AMOR de Deus.

Quem SABE que Deus não existe, NÃO SABE nada disto, porque nunca se deu a si próprio a oportunidade de se auscultar no mais profundo do seu ser, de viajar até ao interior da sua alma para falar com Ele.

E não, não estou a falar de religiões. Estou a falar da existência de Deus.

Infelizmente há, no interior das várias instituições religiosas, os que SABEM que Ele existe e aqueles que FINGEM SABER. Por isso é que as coisas são como são.

Não vale a pena entrar para uma instituição religiosa à procura de Deus. Ele não está lá. Ele está dentro de cada um de nós.

Só depois de o encontrarmos aí, é que vale a pena ingressar numa instituição – aquela para onde Ele nos chamar. Porque Ele chama, não tenham dúvidas. Ele chama quem o ENCONTRA. Quem o ENCONTRA dentro de si. Porque não vale a pena procurá-Lo com a razão – nunca O encontrarão. Ele está muito para além disso – Ele está nos númenos de Kant. Está na nossa alma. Está na nossa fé porque, afinal, é tudo uma questão de Fé. Tudo. Por mais contas que se façam, é tudo uma questão de Fé.

E porque haveriam vocês, os não crentes, de andar à procura de algo que SABEM que não existe?

Bom, quando mais não seja para poderem provar isso mesmo.

Quem tem certezas não tem medo de nada e, portanto, entrega-se à vida de alma e coração.

Ser capaz de “olhar para dentro” de nós mesmos; de refletir sobre a nossa vida; de questionar o que nos aconteceu e a forma como lidámos com o que nos aconteceu. Ser capaz de “desviar” os olhos do que é palpável e tentar ver para além disso, como quem vê para além da ténue neblina que se forma ao longo do alcatrão num dia quente de Verão ou o que está para lá da luz do sol refletida pela neve. Tudo isso faz parte de uma entrega total à vida.

O tempo gasto freneticamente com “coisas” é uma fuga à própria vida.

Quem se recusa a refletir. Quem não é capaz de se isolar por algumas horas para ouvir a voz que lhe vem de dentro foge freneticamente da vida.

Quem é capaz de fazer isso. Quem faz dessa reflexão uma prática constante. Mais cedo ou mais tarde, encontrará Deus.






terça-feira, 27 de setembro de 2016

Com que idade deveríamos morrer?




Com que idade deveríamos morrer?

Qual é o momento, da descida, em que deveríamos partir sem dor para quem parte, sem dor para quem fica?

Aqui estou eu. Mãe. Avó. A bater à porta dos sessenta. Quem, com a minha idade, tem ainda pai ou mãe? Eu tenho os dois. E estou sozinha.

Que sorte! Dirão aqueles que os perderam no tempo das boas recordações. Aqueles que sentem saudades, não daquilo que eles seriam hoje se ainda fossem vivos, mas do que foram ontem, muito antes disso.

Com que idade deveríamos morrer?

Em que momento da descida, da perda de faculdades que só os outros vêem, deveríamos partir?

E quem cá fica? E quem cá está? Com que olhos deve olhar para o que é, sem despedaçar o coração?

Com que coração há-de suportar os olhares de acusação?
 – Não estás a tratar de mim! Não é isto que eu quero! Não estou bem! Nunca estou bem! Sou a pessoa mais infeliz do mundo porque envelheci!

Com que olhos se olha, sem que o coração se parta? Com que braços se abraça, sem sentir a impotência?

Tenho momentos em que detesto a minha mãe. Acho-a má. Infantil. Incompetente. Egoísta…

Tudo isso lhe vejo no olhar. Na indiferença ao meu esforço. No esquecimento de que também sou gente.


E depois, logo a seguir, o meu coração desfaz-se em culpa. Enche-se-me o peito de uma angústia tão profunda que só a memória da minha filha, a abraçar carinhosamente a minha neta, me acalma. Só a certeza desse amor manifestado me tranquiliza. Afinal, nem tudo foi em vão.

domingo, 10 de julho de 2016

Ser Bom – um conceito decadente


A Bondade é um conceito claramente ultrapassado.

O que é isso de ser Bom?!

Ah você ajudou um velhinho a atravessar a estrada?

Tratou bem o vizinho, apesar de ele não o deixar dormir de noite? Que simpatia!

Deu lugar a uma grávida no autocarro?

Pediu desculpa por não ter reparado em quem estava à sua frente? Que educação!

Há muitos anos, quando eu ainda tinha alguma vergonha de ser eu, houve alguém que se insurgiu contra mim dizendo, alto e bom som:  Ninguém é assim tão boazinha!

Ao longo da minha vida tenho-me deparado, com uma assiduidade considerável, com desconfianças que oscilam entre o descrédito e a certeza de que por detrás de mim existe uma qualquer intenção maléfica destinada a satisfazer as minhas necessidades, sejam lá elas quais forem.

Tenho uma novidade para todos: essa não sou eu.

Não, não sou premeditada.

Sim, sou genuinamente boa.

E mais, desde que adquiri a consciência de que ser boa é, afinal, algo de extraordinário – consciência aliás que me foi dada por todos quantos sempre duvidaram da existência da bondade ou têm feito da sua vida uma campanha a favor da certeza de que todos os seres humanos são genuinamente maus, o que faz dos Bons seres extraordinários -, desde esse momento, dizia eu, que me tenho empenhado em apurar e aprofundar esta minha característica, de modo a que ela se transforme no “absolutamente mim”, libertando-me gradualmente do maior número possível de sentimentos, pensamentos ou actos típicos dos homens maus.

A sensação de bem-estar, de satisfação e realização pessoal é tal que não me deixa compreender esta aversão quase geral que as pessoas têm à existência, e prática, da Bondade.

Desde quando é que ser bom é um ridículo sinal de fraqueza, debilidade ou mesmo estupidez? Quando é que essa ideia começou e quem é que a espalhou? Não faço a mínima ideia. Sei, de fonte segura, que está na hora de desmistificar a Bondade. De deixar que ela saia da concha. De a olhar como ela merece – um bem preciosíssimo capaz de trazer felicidade à mais desgraçada das criaturas.

Se é fácil? Nem por isso. É talvez mais fácil ser-se mau. Mas muito menos compensador. Garanto-vos.

O que me leva a deduzir que a Maldade, essa sim, é própria dos fracos, dos débeis e dos ignorantes. Dos incapazes e dos verdadeiramente estúpidos que ainda acreditam que a felicidade é um somatório de momentos preenchidos por prazeres tão fugazes que até por quem eles passa pouco recorda no dia seguinte.

A Bondade é um conceito claramente ultrapassado? Pode até ser que sim, que tenha vindo a ser. Mas está na hora de ser ressuscitado. Está na hora de ganhar o seu merecido lugar no teatro da vida.

Por isso, criaturas, encontrem-na dentro de cada um de vós – mesmo que esteja muito escondida, ela está lá. Encontrem-na e tragam-na à superfície. Cultivem-na. Desenvolvam-na e sejam felizes.

Está na hora.



quarta-feira, 8 de junho de 2016

Quem quer viver comigo?




Estão a surgir na Alemanha comunidades seniores.

Gente com mais de 55 anos que junta os trapinhos, compra ou aluga uma casa grande e vai viver em comunidade, garantindo ajuda, companhia, entretenimento, amparo.

Chama-se a isso – envelhecimento activo.

Confesso que a ideia me encantou. A pessoa com quem falei, que é de lá, contou-me a história da mãe que tem duas amigas, que vivem mais ou menos próximas umas das outras mas que são pessoas tão diferentes que acabam por passar a maior parte dos dias fechadas, cada uma na sua concha.

Estas comunidades, diz ela, permitem uma variedade de gostos e de opções tão vasta quanto o número de pessoas que as compõem, não descurando a privacidade – cada um tem o seu quarto -, a partilha – tanto a sala como a cozinha são comuns -, a autonomia e a independência – ajudam-se uns aos outros na medida em que cada um pode. E, mais importante ainda, são uma oportunidade para os menos abastados poderem ter uma vida mais atraente dado que as despesas são partilhadas.

Diz ela que um grupo de doze pessoas se juntou para determinar o que cada uma poderia dar/fazer em prol da comunidade – sem menosprezar o prazer porque a partir de uma certa idade o que não se faz por prazer não traz proveito. Depois de todas as revelações e acordos, decidiram comprar uma casa de campo, rodeada de um jardim e com um outro situado entre os quatros blocos que compõem o quadrado que é a casa.

Entre elas decidiram o que cada uma tinha de melhor para rechear a casa. Aquilo que não serviu, cada uma desfez-se do que era seu – vendendo ou dando a quem precisou.

Nem todas entraram com a mesma quantia para a compra pelo que ficou decidido que quem entrasse com menos compensaria com um qualquer serviço doméstico ou profissional de valor previamente estipulado de forma a ser possível, numa dada ocasião, restabelecer a igualdade.

Diz ela que nunca mais ninguém ficou sem companhia, para ir ao cinema, para dar um passeio pela cidade, para ir às compras ou para viajar. Nunca mais ninguém se sentiu sacrificado e a disposição da comunidade é, grosso modo, saudável.

Parece-me uma excelente solução para o nosso país cada vez está mais envelhecido, cuja Segurança Social dificilmente garante uma velhice digna, cujo número de velhos abandonados em suas casas é cada vez maior.

Aqui fica a sugestão de um modelo consideravelmente adaptável às realidades e necessidades de cada um. 

Mãos à obra.