Todas as manhãs era um
martírio. Quando chovia então nem se fala, era o descalabro. Não bastava ser
empurrado, tinha de se incendiar um bocado de jornal e chegá-lo ao carburador -
ou a um outro lugar qualquer junto à grelha da frente e que muito possivelmente
teria outro nome - para que o estupor pegasse.
Não havia Bala que valesse e
eu, com uma barriga do tamanho do mundo, lá o empurrava rua abaixo até ele se
condoer de mim e começar a trabalhar. Primeiro aos soluços, indeciso, e por
fim determinado levava-me a Lisboa e trazia-me de volta ao final do dia sem
protestar, na maior parte das vezes.
No dia seguinte, às sete da
manhã, repetia-se a aventura. A barriga cada vez maior. O meu filho a querer
nascer e o estupor do carro que nunca pegava à primeira! e nem à segunda e nem
à terceira...
Deixou-me ficar mal tantas
vezes!
Uma noite, chovia que Deus a
dava e a fila na avenida da ponte era tão grande que o automóvel, cansado,
desistiu. Tudo nele se apagou. Telemóveis? Não tinham sido inventados ou, se
tinham, não estavam à disposição da plebe.
Tranquei-me dentro do carro
à espera que a polícia se apercebesse do caos dentro do caos que já existia.
Como a coisa demorasse, fui
pedindo a quem lentamente passava que ligasse para a minha casa. Dei o meu
número de telefone a mais de quatro condutores. Façam-me esse favor, pedi eu.
Que sim, que fariam. Não fizeram.
O raio do carro, cuja
bateria não aguentou estar parada tanto tempo com o rádio, as luzes e o
aquecimento ligados, assim que levou um empurrãozito rua acima, pegou e seguiu
viagem.
Quando cheguei a casa estava
tudo num alvoroço, pensaram que nos tínhamos perdido, eu e o automóvel, na
chuva da noite.
Já de Verão era outra coisa!
Deixava-se passear de capota
aberta! Qual descapotável! Cabelos ao vento!
Ensinou-me a conduzir, o
estupor, com aquela manete de mudanças cheia de curvas e contracurvas.
Vendi-o pouco depois do meu
filho nascer. Há cerca de 30 anos.
Encontrei-o hoje, como novo,
estacionado frente a um parque de lazer, na Costa da Caparica.
4 comentários:
~~~
~ Compreendo absolutamente a sua exasperação,
pois também tive um «Mini Morris», cheio de
manias que me tiravam completamente do sério.
~ Há precisamente 30 anos...
~ ~ ~ Abraço amigo. ~ ~ ~
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Grandes aventuras, Amiga!
Mas, caramba, o "dois cavalos" é lindo de morrer... E aposto que também sentiste uma nostalgia e uma saudade pequeninas, desse tempo, quando o reencontraste. É que estes carros tinham alma, manias, e defeitos...
Um abracinho
João
Tenho muitas saudades João :)
Se, na altura, eu pudesse ter comprado outro sem ter de vender este tê-lo-ia feito.
Quando o encontrei agora nem queria acreditar! Gostei muito de o ver tão estimado. Os mesmos estofos! foram recuperados com certeza! Ainda esteve uns anos nas minhas mãos e vivemos juntos algumas aventuras :) :) :)
Que belo texto, tão divertido e bem escrito!
Um abraço,
Soraya
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