quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Dos abusos, dos abusados e dos abusadores


Quarenta anos passaram desde aquele momento em que o amigo se abeirou de mim para perguntar, Gostas de alguém?, e eu, sincera, olhei-o naturalmente e respondi, Não, de ninguém. Mas ele tanto insistiu que eu, olhando em redor, acabei por apontar para quem estava mais perto e era, segundo os critérios de então, um dos mais cobiçados. Dele, disse eu. E o amigo, com o desalento estampado no rosto, ainda insistiu, Mas tens a certeza?
Eu encolhi os ombros sem saber que, nesse dia, em frente a ele, o amigo baixaria os olhos e, desolado, abanaria lentamente a cabeça enquanto as palavras lhe sairiam a custo – Não é de ti!

Talvez nesse tempo ainda existisse entre nós um espírito de combate, uma vontade de vencer. Ou talvez ele fosse mesmo assim, um lutador. Ou, talvez ainda, a sua convicção fosse maior do que a minha certeza, porque a verdade é que não desistiu. Esperava-me nos intervalos das aulas; ao final da manhã; ao início da tarde. Acompanhava-me e fazia-me rir. Alto, mais alto do que o comum. Magro, muito magro por causa da asma e feio. Sim, feio. Desengonçava-se todo para me fazer rir. E conseguia.

Mas eu tinha razão. Não gostava de ninguém. A não ser dos meus – do meu pai; do meu irmão; do meu primo…Na minha alma não morava nenhum desejo de paixão. Era um encolher de ombros. Um tanto me faz.

Há acontecimentos que nos marcam para o resto da vida. Que nos fecham a alma. Nos trancam o coração. Acontecimentos que nos roubam, num repente, aquilo que era suposto sermos nós a dar, devagar, com tempo, a seu tempo.

São acontecimentos conhecidos por muitos e reconhecidos por poucos. Acontecimentos que se calam e que, por se calarem, quem por eles passa dificilmente encontra a compreensão e a paciência que as marcas desses acontecimentos exigem.

Acontecimentos que carregamos anos e anos, por vezes toda a vida. Que nos obrigam a navegar ao seu sabor. Que nos incapacitam, nos escondem, nos mudam.

Acontecimentos que são fruto de uma sociedade defeituosa. Repressiva e reprimida. Uma sociedade construída para muitos, por alguns – os que acreditam que são livres mas de liberdade não sabem quase nada.

A liberdade vive dentro de nós. A liberdade, aliada à coragem de ser, liberta-nos verdadeiramente e, por nos libertar, deixa-nos ver o que realmente importa. E o que realmente importa tem muito pouco a ver com o que os nossos apetites mesquinhos e pontuais reclamam.

A repressão, mascarada de ordem, que temos vindo a implementar desde há séculos, para benefício de alguns e prejuízo de muitos, amachuca indelevelmente quem somos – seres de luz e de amor, de corpo e de alma.

A repressão, venha lá ela de onde vier, gera violência. Transforma tudo o que é bom em tudo o que é mau.

Andamos há anos a tapar as nossas bocas para, de vez em quando, criarmos o caos, e não nos apercebemos que, afinal, se calhar, bastaria destapá-las – mesmo que isso não seja assim tão simples.

Afinal, nunca é.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Última Hora!


Gosto de me sentar na bancada da cozinha, de manhã, a tomar o pequeno almoço.
Ligo o pequeno televisor e a box que o acompanha e, à medida que vou mastigando a bola de mistura recheada do que me apetecer, vou mudando de canal na esperança, sempre na esperança, de sentir que estou a par de tudo o que se passa no mundo.
Tarefa cada vez mais difícil, não pelo que acontece por aí mas por ficar sempre com uma estranha sensação de distração, de alheamento. Como se quem me transmite as notícias não as quisesse na verdade transmitir ou não as conheça também e, tal como eu, ande à procura da realidade que foge, cada vez mais, dos olhares de todos nós, ou quase todos.
Ontem, por exemplo, enterneci-me com o vídeo de um chimpanzé fêmea que, tendo sido capturada num estado de saúde muito debilitado, se despede da sua salvadora com um abraço reconhecido e humano. Quem não se enterneceria?! No entanto, após uma busca – fácil e rápida -, no Google, percebo que o vídeo que o jornal da manhã me oferece tem mais de um mês. E, quando finalmente me passou a comoção do abraço, pensei para mim que talvez, talvez, os jornalistas não saibam, não tenham forma de saber, que neste mundo de profundas mudanças todos os dias acontecem coisas. Se calhar não tão importantes quanto a manifestação, afinal humana, de um símio que nos inspira ternura e amor – muito adequado, por necessário, para os tempos que correm -, mas atuais como se querem as notícias – atuais ao jeito de última hora. Tal e qual eram anunciadas, pelos ardinas, nos primórdios do jornalismo quando os jornalistas eram apenas meia dúzia de coscuvilheiros que gostavam de escrever.
 
 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Bons para um lado. Maus para o outro.


Não sou saudosista. Pelo menos não em demasia. Com o tempo tenho-me vindo a adaptar melhor às mudanças, mesmo àquelas que se revelam menos boas. Aprendi que as únicas mudanças que importam verdadeiramente são aquelas que se realizam dentro de nós. As outras, são pontuais – uma vez adaptados, tudo regressa à normalidade, tudo entra no ram-ram do dia-a-dia. É a adaptação que dá trabalho, causa stresses e angústias, principalmente porque a tendência puxa sempre para a transformação do que é no que era, e raramente para o aproveitamento de uma oportunidade única de crescimento. Isto dito assim pode parecer um pouco confuso. Mas não deixa de ser verdadeiro.
A nossa resistência à mudança, seja ela particular ou comum, é histórica e visceral. Veja-se, por exemplo, a reação geral aquando da invenção do comboio – “o diabo de ferro” -, da indústria, ou mesmo dos computadores. Sempre que surge algo de novo as nossas pernas tremem, o coração sobressalta-se – todos sabemos que alguém vai cair para outros se levantarem um pouco mais. É assim a vida. Sempre foi. Dinâmica.
O que importa aqui é que as mudanças privilegiem a maioria e que todos, ou quase todos, possamos crescer com elas – tornarmo-nos mais humanos, nem que para isso seja necessário mudar de caminho numa espécie de retorno que nunca o é. Numa espécie de aproveitamento da filosofia de ontem – se ela for melhor do que a de hoje – e da tecnologia de hoje – se ela for melhor do que a de ontem.
O que importa aqui é que sejamos capazes de aprender verdadeiramente com a experiência e, para isso, não podemos esquecer o passado.
O que importa aqui é que sejamos capazes, através desse passado, de compreender o presente e de, sobre ele, termos uma palavra a dizer.
O que importa aqui é que não nos deixemos adormecer mas que não esqueçamos que o bem maior é sempre o bem comum e que nem sempre, por muito boa vontade que exista, a fronteira entre um e outro é clara. Basta termos a consciência de que a visão do mundo muda com o olhar de cada um de nós.
Por isso, talvez possamos, e devamos, começar pela simplicidade de dividir o mundo em dois, os sentimentos em dois, as vontades em duas – bons para um lado e maus para o outro. É, sem dúvida, um cliché, mas a rejeição dos clichés também é um preconceito.
As mudanças ensinaram-me – estão a ensinar-me -, a crescer. E esse crescimento passa, necessariamente, por eliminar, o mais possível, o que em mim faz mal e alimentar, o mais possível, o que em mim faz bem. É esse o caminho para a nossa humanidade.
 
 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O pato de borracha


 
Enquanto na Índia se tenta encobrir o homicídio de uma garota de dezasseis anos violada em Outubro por seis manfias que deveriam ser encarcerados para todo o sempre mas que, em vez disso, puderam fazer valer os seus direitos ao poder – violá-la uma outra vez e por fim queimá-la que é para aprender a estar calada que as mulheres, na Índia e, vai-se a ver, em muitos outros lugares, são para ser violadas, abusadas, desrespeitadas e postas na linha à força de músculos, tal e qual como nos primórdios da humanidade em que a sobrevivência deles dependia.
Dizia eu que, enquanto na Índia se passa isto que aqui ledes, em Taiwan é notícia o rebentamento de um pato gigante que, apesar de ser considerado obra de arte, não passa de uma versão exageradíssima dos pequenos patos amarelos que costumam servir de incentivo aos banhos dos mais pequenos.
Pois, em Taiwan, as pessoas ficaram quase tão tristes com o rebentamento do pato quanto na Índia com o homicídio da jovem.
Enquanto isto, no Camboja, vivem-se horas de confusão à pala da greve dos trabalhadores têxteis. Quem vir as imagens que de lá chegam perceberá que cada cêntimo que paga por cada peça de roupa não serve, com certeza, para melhorar o nível de vida daquela gente.
Pelo Ocidente não sei o que se passa. Provavelmente, mais ou menos as mesmas coisas mas, enquanto nos entretemos com notícias mais distantes, vamo-nos abstraindo das nossas…
Se calhar o mundo foi sempre assim – o que não abona muito a seu favor -, só que agora tudo se sabe. Até que existem patos gigantes, feitos de borracha, a nadar em grandes lagos para deleite dos transeuntes.