Quarenta anos passaram desde aquele momento em que o amigo se abeirou
de mim para perguntar, Gostas de alguém?, e eu, sincera, olhei-o naturalmente e
respondi, Não, de ninguém. Mas ele tanto insistiu que eu, olhando em redor, acabei
por apontar para quem estava mais perto e era, segundo os critérios de então,
um dos mais cobiçados. Dele, disse eu. E o amigo, com o desalento estampado no
rosto, ainda insistiu, Mas tens a certeza?
Eu encolhi os ombros sem saber que, nesse dia, em frente a ele, o amigo
baixaria os olhos e, desolado, abanaria lentamente a cabeça enquanto as
palavras lhe sairiam a custo – Não é de ti!
Talvez nesse tempo ainda existisse entre nós um espírito de combate,
uma vontade de vencer. Ou talvez ele fosse mesmo assim, um lutador. Ou, talvez
ainda, a sua convicção fosse maior do que a minha certeza, porque a verdade é
que não desistiu. Esperava-me nos intervalos das aulas; ao final da manhã; ao
início da tarde. Acompanhava-me e fazia-me rir. Alto, mais alto do que o comum.
Magro, muito magro por causa da asma e feio. Sim, feio. Desengonçava-se todo
para me fazer rir. E conseguia.
Mas eu tinha razão. Não gostava de ninguém. A não ser dos meus – do meu
pai; do meu irmão; do meu primo…Na minha alma não morava nenhum desejo de
paixão. Era um encolher de ombros. Um tanto me faz.
Há acontecimentos que nos marcam
para o resto da vida. Que nos fecham a alma. Nos trancam o coração.
Acontecimentos que nos roubam, num repente, aquilo que era suposto sermos nós a
dar, devagar, com tempo, a seu tempo.
São acontecimentos conhecidos por
muitos e reconhecidos por poucos. Acontecimentos que se calam e que, por se
calarem, quem por eles passa dificilmente encontra a compreensão e a paciência
que as marcas desses acontecimentos exigem.
Acontecimentos que carregamos
anos e anos, por vezes toda a vida. Que nos obrigam a navegar ao seu sabor. Que
nos incapacitam, nos escondem, nos mudam.
Acontecimentos que são fruto de
uma sociedade defeituosa. Repressiva e reprimida. Uma sociedade construída para
muitos, por alguns – os que acreditam que são livres mas de liberdade não sabem
quase nada.
A liberdade vive dentro de nós. A
liberdade, aliada à coragem de ser, liberta-nos verdadeiramente e, por nos
libertar, deixa-nos ver o que realmente importa. E o que realmente importa tem
muito pouco a ver com o que os nossos apetites mesquinhos e pontuais reclamam.
A repressão, mascarada de ordem,
que temos vindo a implementar desde há séculos, para benefício de alguns e prejuízo
de muitos, amachuca indelevelmente quem somos – seres de luz e de amor, de
corpo e de alma.
A repressão, venha lá ela de onde
vier, gera violência. Transforma tudo o que é bom em tudo o que é mau.
Andamos há anos a tapar as nossas
bocas para, de vez em quando, criarmos o caos, e não nos apercebemos que,
afinal, se calhar, bastaria destapá-las – mesmo que isso não seja assim tão
simples.
Afinal, nunca é.