segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Natureza

Penso que a Puca devia estar habituada a comer restos. Arroz; ossos, coisas assim. A veterinária disse para lhe misturarmos arroz cozido à ração, para lhe regularizar os intestinos. O pior é que ela sem arroz recusa-se a comer e na rua parece doida à procura de ossos esquecidos ou enterrados no meio do mato. Não, não sei como é que lá vão parar, mas que os há, há e hoje, na ânsia de lhe tirar um da boca, levei uma dentada. Bem, talvez não uma dentada, uma dentadinha, vá…

Amanhã vou ver se lhe compro um daqueles ossos de faz de conta, feitos de pele de qualquer coisa. Pode ser que ela perca esta mania. Sei lá de onde vêm essas porcarias que ela procura, tresloucada, nisto que já foi mais jardim do que é agora e que fica aqui, nas traseiras da nossa casa.

Isto ainda não acabou

Sempre que me ponho a olhar para trás chego à conclusão que aquilo que valeu verdadeiramente a pena continua aqui comigo. E mesmo que por vezes me dê vontade de arrumar as botas, a verdade é que todo o meu ser me diz que ainda há coisas por viver.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Sinais

Há quem leia sinais sem se enganar. Gente perspicaz que lê nas entrelinhas. Eu não. E não só não confio nas coisas que leio nos sinais dos outros, como sou, com certeza, desastrada nos sinais que emito. Talvez por isso não goste de sinais. Prefiro a palavra dita, aberta, limpa, clara e transparente, sem equívocos, sem metáforas. As metáforas guardo-as para a poesia onde as palavras não chegam.

Creio existirem pelo menos dois motivos para não se ser capaz de ler nas entrelinhas. O primeiro prende-se com o medo da verdade e limita a falta de compreensão aos assuntos íntimos, particulares. O segundo prende-se com a falta de capacidade de voos mais altos e estende-se a todo e qualquer tipo de entrelinhas, mesmo às metáforas que moram na poesia.

Desde muito cedo que me dedico ao combate ao medo. Ao que parece ainda não o superei em absoluto, o mais provável é que à medida que o tenho combatido no cômputo geral, tenho aberto portas a algum mais particular. Seja como for não creio que este tipo de coragem seja verdadeiramente apreciado. As pessoas têm medo, disse-me há dias uma querida amiga. Mas tu não sabes que as pessoas têm medo?!

E quanto maior a nossa coragem, maior o medo dos outros. 

Paciência e Persistência

Perguntaram-me hoje porque não voo. Eu voo. Sempre voei. Voar é crer, e eu creio.

Mas neste céu povoado por bandos, de nada serve voar mais alto. Confundimo-nos com as nuvens, separados da terra por cortinas de asas. São os voos rasteiros os que melhor se veem, porque se mantêm ao alcance de quem, sem asas, os olha.

E nesta terra povoada por surdos de nada serve falar mais alto. Perdem-se as palavras no eco dos gritos que ensurdecem o mundo. Só a batida do silêncio mói. Como a água que cai pingo a pingo na pedra perdida no tempo, sem passado nem futuro.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Do Amor



Dêmo-nos as mãos
Caminhemos assim
Lado a lado
De olhos postos no horizonte
Conquistemos o mundo
Nós
Que já vivemos tanto
Já andámos tanto
Já sonhámos tanto
Abracemo-nos agora
Dêmo-nos as mãos
E amemo-nos
Com aquele amor puro
Que não sabe o que é o medo
Aquele amor verdadeiro
Feito de entrega e confiança
Aquele amor profundo, autêntico e leve
Que nos faz sorrir a toda a hora
Dêmo-nos as mãos agora

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O cheiro da terra molhada

Não é que eu goste de andar à chuva, não gosto. Mas gosto do cheiro da terra molhada e gosto do verde que nasce da chuva, disso gosto.

No entanto pouco importa aqui o que eu gosto ou deixo de gostar. O que importa verdadeiramente é que todo este azul por cima das nossas cabeças nos traz enganos, como se estivéssemos a ser levados pela mão por um demónio disfarçado de anjo e sorridentes caminhássemos para uma aridez indesejável da qual ainda não conhecemos os contornos quanto mais o núcleo.

Debaixo deste sol maravilhoso que apesar de brilhar me obriga a manter o aquecimento ligado como em ano nenhum me lembro, sinto cada vez mais que não sei para onde vou nem o que me espera amanhã e, sendo assim, tomara eu que chovesse a cântaros e que todas as ruas e todas as casas e todos os carros e todas as mentes se lavassem e, num novo amanhecer, inspirássemos o cheiro da terra molhada.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Sinais dos Tempos

A mãe, que recebe uma pensão de subsistência desde que o pai teve de recolher ao lar da Stª Casa, foi obrigada a deslocar-se ao centro de saúde aqui do burgo para pedir um papel que comprove que está, sempre esteve, isenta de taxas moderadoras. Exigiram-lhe, a ela e ao meu pai que tem declarados 80% de invalidez e uma pensão de reforma que já conta com trinta e sete anos, infelizmente, comprovativos de rendimentos que provem que não podem pagar as ditas taxas.

Entretanto, não param de chegar mails com fotografias de casas impossíveis, edificadas no Caribe, de um luxo obsceno; no Algarve, de um luxo igualmente obsceno, porque a obscenidade, como tudo o mais, mede-se em relação ao que a circunda; edificadas, enfim, em lugares tão ou mais simpáticos do que estes, casas de luxos tão extremos que nos questionamos que utilidade, na verdade, terão; quantas pessoas delas desfrutarão; que espécie de deuses merece semelhantes tesouros; que mais-valia trazem os mesmos para todos nós; e mais um sem fim de perguntas ingénuas e desnecessárias, que nunca encontrarão resposta.

Hoje passou por cá um senhor da EDP para nos cortar a luz. Não paguei  o mês passado e este mês recebi uma fatura com o acumulado cujo prazo findará no dia 27. Mesmo assim, vieram cá hoje e cortaram a luz. Explicaram-me que, apesar de existir um acumulado, o prazo de pagamento diz apenas respeito à contagem mais recente, não àquela que está em falta. Não sabia. Nunca me tinha acontecido.

Entretanto, ainda estou à espera que me paguem serviços que prestei durante o mês de Dezembro e de Janeiro. Pergunto-me amiúde o que posso eu fazer para que me paguem atempadamente. Deverei deixar de prestar o serviço? Suspendo-o até que me paguem? Mas, assim que perguntas como estas me surgem, logo as avalio como verdadeiramente estúpidas, sorrio, e agradeço a Deus o facto de poder prestar os serviços que presto, quando presto e a quem presto.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Lavores

Bordei-lhe o nome em duas camisolas na esperança de que não desapareçam como tem acontecido com praticamente todo o guarda-roupa.

Tem sido o único senão, aparte, evidentemente, a realidade per si, a força da impossibilidade que o tira de nós. Preferia que estivesse aqui. Tenho vontade de agarrar nele e trazê-lo para casa antes que desapareça com as calças, as camisas, as camisolas…mas isso sou eu que sou egoísta. Quem mais poderia supor que meia dúzia de trapos se sobrepõem às vantagens de fazer ginástica todos os dias; de nadar uma vez por semana; de dar passeios a lugares antigos onde se acreditava não mais voltar?! De ter com quem conversar ao invés de passar o dia sentado no sofá a olhar as imagens que se sucedem no ecrã?! Quem mais senão eu, que sou egoísta e se pudesse tinha-o aqui e pagava a quem viesse tratar dele todos os dias. Se pudesse tinha uma casa grande, numa quinta grande, onde ele pudesse passear e trazer todos os amigos que quisesse, para aqui, para a quinta do faz-de-conta.

Hoje vou ver se lhe arranjo um roupeiro. Um roupeiro onde os seus pertences fiquem a salvo das investidas de uma desinfeção exagerada que deixa por cerzir as calças e sem cor as camisolas. A salvo de uma lavandaria descuidada que faz dois e três vincos em calças que só pedem um, porque o meu pai está habituado a vestir sem mácula, a sentir-se bem.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Teilhard de Chardin

Não somos o centro do universo, mas somos uma variável incontornável e primordial, se não do Universo em toda a sua extensão, neste universo que é o nosso.

Em tempos de crise a necessidade de um conhecimento que nos leve a uma maior compreensão daquilo que somos, porque somos e para onde vamos, porque mesmo que o nosso caminho nos leve a lado nenhum, já é a qualquer lado, a necessidade de um conhecimento mais aprofundado de nós, dizia eu, aumenta em tempos de crise. E como para começar há sempre que escolher por onde, Teilhard de Chardin é, se não o melhor a falar de nós, seres de tantas consciências, tão bom como qualquer outro.

Eu, que ainda não me conformei com a ausência de respostas, estou a aproveitar os tempos mais mortos para ver se encontro algumas e ele está a fazer de tudo para me ajudar.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Parar

Ontem tirei o dia. Agarrei nele e meti-o no bolso como quem guarda algo de seu. É um gesto determinante. Um gesto decisivo – este é meu.

Infelizmente não basta a tomada de posse de um dia para chegar ao fim do dito e sentir que valeu a pena. Nem sei o que chegue. Parece que não há horas suficientes, horas de não fazer nada, que equilibrem este cansaço de estar sempre a fazer qualquer coisa. Sempre a tentar chegar a qualquer lado. Queria parar. Sobretudo queria ter a certeza de que se parasse a vida não parava também.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Vicissitudes

A Puca entrou em delírio, precisamente às 22:30, cerca de três quartos de hora antes de eu chegar de um jantar com afilhados de casamento que não via há tempo de mais e que me soube por uma boa parte da vida – não o jantar mas a companhia, entenda-se. Entrou em delírio e, como doida, correu pela casa toda gritando apertos fisiológicos enquanto a minha mãe, de folha de jornal em punho, rezava para que ela fosse capaz de se aliviar na dita. Sem saber ler nem escrever a Puca entendeu que uma folha de jornal não merece tal desprazer e preferiu aliviar-se nos ladrilhos da sala e da cozinha. Não percebi se o espalhamento se deveu a uma loucura momentânea ou se ocorreu na sequência da fuga ao jornal.

Agarrar na desgraçada e levá-la à rua quando a rua é mesmo aqui, com árvores e tudo, é que não porque à noite uma senhora não sai. Antes andar de rabo para o ar a limpar sabe Deus o quê. Até porque é preciso ter motivo de queixa que isto de jantar sozinha não dá com nada!

Mal sabe ela que a mim não me aquecem nem arrefecem estes apartes e que, com Puca ou sem Puca, não recusarei um convite para uma boa conversa.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Desemprego

Não percebo de economia, menos ainda de política, pelo que aquilo que vou dizer vai com certeza soar a disparate a quem percebe. No entanto, pensem que por vezes o facto de percebermos muito de uma coisa nos restringe os raciocínios, balizando o campo dos pensamentos e, por vezes, as respostas podem morar para lá desse campo. Nunca se sabe…

Posto isto, passo ao disparate. Confundem-me as relações emprego/produtividade; desemprego/estagnação. Por vezes parece-me que o objetivo da criação de emprego está muito mais ligada à necessidade de um rendimento que nos sustenha do que à necessidade de produção deste ou daquele bem. Eu explico, imaginem, por exemplo, que se abrem minas que na verdade não trazem mais-valia ao PIB, muito pelo contrário, dão prejuízo, mas que se ativaram apenas para criar emprego. Não sairia mais barato financiar as famílias que dependem das minas e, em simultâneo, ajudar cada um dos seus membros a descobrir para que servem, o que sabem fazer, de que forma poderão ser verdadeiramente úteis à sociedade, nem que seja, e reparem bem na pobreza desta afirmação, nem que seja no campo das artes?

Não estaremos enganados ao acreditar que quem não faz qualquer coisa socialmente classificada como útil, não merece usufruir dos bens que os outros usufruem? Mesmo aqueles que fingem que produzem?
Não estaremos enganados na classificação das várias atividades humanas, quando valorizamos umas mais do que outras?

Será que não vale a pena rever os valores e, em vez de estar à espera que meia dúzia de pessoas invente trabalho, começarmos a aceitar que cada um de nós pode valer apenas, e até, pelo facto de existir?

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Robots

Ao tentar colocar um comentário no blogue de uma amiga apareceram-me aquelas letras que atestam não sei bem o quê, ou por outra - não sabia.  Hoje fiquei a saber graças à minha incapacidade de destrinçar a primeira série de caracteres engalfinhados. 

Pois que, em consequência do meu erro, fui  ameaçada com a seguinte frase: PROVE QUE NÃO É UM ROBOT.

Palavra de honra que nunca me passou pela cabeça ter de provar uma coisa destas! De agora em diante vou olhar muito atentamente para quem se cruzar comigo. Nem sei mesmo se não será melhor inventar um código qualquer que prove que estou a falar com os meus semelhantes...


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Saúde e higiene mental

Hoje de manhã, a propósito do triplo homicídio de Beja, um especialista em saúde mental que não fui a tempo de descobrir se é Psiquiatra se Psicólogo, no jornal da RTP1, abordou um tema que me é caro – A ditadura da normalidade que nos impede a todos, ou quase todos, de manifestar qualquer suspeita “anomalia” cerebral, sob pena de sermos, direta ou indiretamente, ostracizados, restando-nos, aos que os têm evidentemente, os amigos mais próximos, mas mesmo mesmo muito próximos, daqueles que a maioria de nós tende a perder ao longo da vida, por falta de tempo.

Dizia o Dr. António Sampaio, assim se chama o especialista, que esta ditadura, subtil mas tão ou mais castradora do que qualquer outra, é em parte responsável por comportamentos similares ao deste marido, pai e avô, acerca do qual se tem especulado mas de quem se sabe pouco, sendo que quem mais sabia já cá não está para contar.

Pois que esta ditadura nos tem impedido, em Portugal e não só, mas é aqui que vivemos pelo que é sobre nós que podemos, e devemos, refletir, pois que esta ditadura, dizia ele, nos impede de nos queixarmos de pensamentos estranhos, visões ou manias, como nos queixamos, por exemplo, de uma dor de estômago ou de uma outra dor qualquer, que de resto se tivermos paciência para ouvir os portugueses, em especial as portuguesas de idade mais avançada, verificaremos que as queixas de teor físico são utilizadas como desporto nacional e uma conversa entre duas mulheres pode muito bem transformar-se num renhido concurso onde ganha quem sofrer de mais maleitas.

Contudo, no que diz respeito à higiene e à saúde mental, tira o cavalinho da chuva que isso não é comigo eu sofro é de dores de costas, de cabeça, de pernas, de estômago, enfim, de tudo o que se pode tocar, mas de cabeça sou muito saudavelzinha pois claro não se está mesmo a ver…E este é um concurso onde a vitória até me fica bem porque me despeço de todos deixando aquele sentimento de dó – coitada, tem sofrido tanto!...

Olha se estas pessoas, em vez de enunciarem as inúmeras maleitas que vão inventando ao longo da vida, sem quererem sequer saber da verdadeira origem de cada uma, resolvessem confessar à vizinha do lado que andam muito tristes porque o marido não lhes passa cartuxo ou, pior ainda, que o marido lhes bate e ainda por cima dorme com a filha a quem fez um filho. Ou, imaginem alguém confessar ao vizinho que está convencido que a família já não é a família mas uns quaisquer substitutos que alguém resolveu introduzir lá em casa! O que é que pensam que aconteceria a uma pessoa dessas? O vizinho, compreensivo e de espírito aberto perguntar-lhe-ia há quanto tempo não ia ao médico e aconselhá-lo-ia a marcar uma consulta, ou rir-se-ia, afastar-se-ia e espalharia pelos sete ventos que o vizinho tinha endoidecido, não sem primeiro fazer muitas vezes que sim com a cabeça, sossegando o outro não fosse o tipo passar-se e fazer sabe Deus o quê?!...

Vivemos, realmente, numa ditadura da normalidade e na apologia do que é material. Esquecemo-nos que de normalidade não percebemos nada, não sabemos o que é e quanto ao que é material por cá fica quando nos formos. Como disse hoje de manhã, e muito bem, o Dr. António Sampaio – a verdadeira ruína é a perda do pensamento e ele perde-se, em todos nós, muito mais do que aquilo que gostamos de admitir.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Ai de mim

Quero estar, e estou, feliz no meu pequeno mundo, aquele que o meu horizonte abarca e o meu coração protege, mas não me é possível inebriar e esquecer o resto, que também faz, infelizmente, parte daquilo que é meu. Não que eu tenha pedido, na verdade não pedi, ofereceram-me. Muito já cá estava quando cheguei, o resto veio depois de 75. Foi uma alegria! Tanta fartura! Até de liberdade e de justiça houve fartura.

Agora dizem-me que afinal é preciso devolver. Parece que quem deu não tinha na verdade nada para dar, e pediu emprestado. Agora mostram-me que afinal a liberdade é uma ilusão e a justiça uma farsa. Eu deixei de poder pôr o pé em ramo verde. Ai de mim se me atrevo a pisar um pouco mais o acelerador ou a parar o carro seja lá onde for – nos dias que correm não há lugares oferecidos, todos se vendem. Ai de mim se me atrevo a deixar passar uns dias o prazo seja de que imposto for. Ai de mim. Que tenho de andar permanentemente alerta não vá a memória atraiçoar-me. Que tenho de fazer das tripas coração e pedir até que me paguem, e fazer esperar aqueles a quem tenho de pagar, num círculo vicioso de atrasos constantes. Ai de mim que os vejo a todos, esses que roubaram anos a fio, esses que têm de sobra aquém e além-fronteiras, a serem absolvidos pela justiça que afinal só é cega para quem a pode pagar. Ai de mim.  

Benefícios caninos

Foi preciso ter cão, ou cadela, para o caso tanto faz, para conhecer os pinhais que circundam aqui o burgo. São imensos! E deixam-nos ver o mar! Ainda não levei máquina mas hei de levar para vos mostrar o Bugio visto daqui, das traseiras da minha casa.

Foi preciso ter cão para dar serventia às minhas pernas! Pode ser que agora consiga emagrecer. Descobri que tenho pinhais a perder de vista onde me posso perder se quiser.


sábado, 11 de fevereiro de 2012

Ao pé de nós



Não se chama Bella nem é tão bonita, pelo menos por enquanto. Chama-se Puca, é arraçada de cão d'água e foi mal tratada durante toda a vida. Negligenciada, cresceu amarrada a uma corrente que fez do seu mundo um mundo muito pequenino e muito, muito, pobre.

Como quando a resgataram estava cheia de rastas, teve de ser tosquiada. Por isso parece um ratinho de focinho pontiagudo. Quando voltar a ter pêlo,  longo e ondulado como se quer num cão d'água, vai ficar muito mais bonita. Para já é só uma cadelinha muito meiguinha e sossegada, que se sente bem por cá.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Verdugos

A ilusão de liberdade é tão mais marcante quanto mais subtil, disfarçado, sem rosto for o controlo. E é precisamente quem se sente mais livre que o é menos, de tão crente deixa-se ir, convencido que vai por vontade própria. Deixa-se levar, embriagado de poder, cego pelos bens que julga possuir.

Antes viessem a cavalo, de escudo e espada, os assaltantes. Mas são outros os verdugos que nos visitam agora. Vêm disfarçados de benfeitores, de gente interessada, que nos defende. Vêm disfarçados de sistemas binários incapazes de qualquer humana interpretação que os responsabilize. Vêm disfarçados de inevitabilidade; de mentores; de pais; de mães; de sábios e só quem sabe, quem vê, lhes vislumbra a mediocridade; a fraqueza; a incapacidade.

Na História há épocas e Épocas. Estamos a viver uma Época. Aproveitem, enquanto é tempo e tentem aprender o mais possível, será a única coisa que levarão convosco, se alguma coisa levarem, quando se despedirem.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Bella

Ando com os olhos numa cadela arraçada de poodle miniatura que está na lista dos animais adotáveis da União Zoófila. Desde o início da semana que tento contactá-los sem sucesso. Pergunto-me quem cuidará dos animais dado que todos os assuntos relacionados com visitas, contribuições ou hipotéticas adoções terão de ser tratados às 4ªs à tarde ou aos sábados, dentro do mesmo horário, isto porque a União subsiste à força de voluntariado e dos sócios que não desistem, desde 1951.

Esta ideia de ter uma cadela tem-se implantado devagar no meu espírito e, como todas as coisas que se implantam devagar, tem ganho raízes, transformando-se numa certeza de querer. Quando vi a Bella pensei que a quero. Hoje de manhã imaginei-a à porta do quarto, à minha espera, com um olhar doce e paciente. Imaginei-a, também, a acompanhar-me para todo o lado, sem precisar de trela, a caminhar ao meu lado, a saltar para dentro do carro, a fazer-me sentir que não estou sozinha porque mesmo que toda a gente desapareça da face da Terra e eu não tenha ninguém, coisa que evidentemente não vai acontecer, tê-la-ei a ela, ao meu lado, todos os dias.

Agrada-me a ideia de ter ao meu lado, todos os dias, um ser vivo que me ame sem medo nem reticências.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A Guerra

Há qualquer coisa que me diz, sempre disse, que certas meias tintas não são desejáveis; que há momentos em que tem de ser sim ou sopas. Há momentos em que o balanço é tão falso, tão periclitante; tão sozinho no espaço quanto os cabos de aço atravessados por saltimbancos sem redes e sem vara.

Há momentos em que o equilíbrio exige demasiado esforço e que a escolha tem de ser feita – ou sim, ou sopas.

Pode levar algum tempo. Pode até ser que aguente mais uns anos mas, por outro lado e se formos a ver bem, andamos a cheirá-la praticamente desde o rescaldo da anterior. Talvez não tenhamos muito mais tempo. Talvez a guerra esteja só à espera de ser única – a única alternativa. Talvez ela esteja só à espera de ter a certeza que é desejada. Talvez esteja só à espera da gota no copo de água. Talvez esteja só à espera de se cansar de estar à espreita. Ou, quem sabe, de se cansar de distrações.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A Família

Quando reservei as mesas não tinha a certeza do número de presenças. Há anos que não nos juntávamos. Penso que desde o último funeral e, mesmo aí, aparecemos um bocadinho desencontrados. Somos, ou éramos, sete primos, a maioria com filhos, alguns já com netos. Durante a nossa vida de adultos juntámo-nos talvez duas ou três vezes, todos, ou quase todos, há sempre alguém que fica de fora, impossibilitado pela distância. Ontem ficaram dois, mergulhados nas neves que não param de cair a norte deste velho continente; e mais três que já cá não estão – uma prima e duas tias. Em tom de compensação rebuscámos uma amiga de infância da primeira geração, que conta já com 88 anos e que reconheceu imediatamente um avô que não via desde menino, se ele fosse careca compreender-se-ia o imediato reconhecimento, como não é o caso…

Juntámos quatro gerações para festejar os oitenta anos da minha mãe. O mais novo, o Zé Maria, nasceu há um mês e portou-se tão bem que nem demos por ele. Dormiu o tempo todo, a despeito das preocupações da bisavó que se escandalizou com a vinda do menino. A geração número três encheu a mesa, deu-lhe alegria e contagiou os da segunda que ainda se sentem mais próximos dos filhos do que dos pais. Os mais velhos comoveram-se e o meu pai, que ultimamente tem convivido com a morte mais do que costumava, deixou-se arrastar pela melancolia da dúvida eterna – será que ainda vou andar por cá quando uma coisa destas se repetir?

Foi o mesmo há pouco tempo, quando o meu irmão, depois de ter passado uma semana connosco, teve de voltar para casa, numa ilha do mar do Norte. Chorou, como chora sempre, sem saber se o voltará a ver ou não. Não creio que seja a morte que o amedronta, é antes a partida, a separação.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Cansaço

Se há silêncios de ouro, são aqueles que raramente despontam no meio do burburinho cansativo dos risos, ditos e disparates.

Não sei se as sextas-feiras são mais difíceis do que os outros dias por cansaço meu ou de todos, mas são.
E vamo-nos distraindo desse cansaço, diluindo-o em palavras vãs que parecem não se gastar mas gastam. Perdem a profundidade, o sentido e, por vezes, até a luz ou as trevas originais.
Por isso os silêncios são maravilhosos. Silêncios em que o coração se senta dentro do peito, abrandando o ritmo do sangue nas artérias. Momentos de paz no meio do burburinho.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Memórias

Esta história de uma pessoa não valorizar o presente é uma chatice, especialmente quando no dito surgem memórias de um passado que, como é hábito, não foi devidamente valorizado enquanto presente, e chegamos à conclusão que afinal as coisas talvez não tenham melhorado assim tanto ou, se melhoraram umas, pioraram outras e vem-nos uma certa nostalgia de um passado que já foi presente e que na altura não nos pareceu assim tão especial.

Hoje dei de caras com umas fotos que me empurraram para trás e me provocaram sentimentos impossíveis dada a certeza que sempre tive de que não foram bons tempos. Ao que parece todos os tempos têm o seu quê de bom e o seu quê de mau, a questão não está tanto nos tempos mas em cada um de nós. Provavelmente a vida tem-se-me adiantado e vai-me dando coisas para as quais eu só estou preparada anos depois, quando delas já prescindi. Ou se trata de uma estranha e sádica ironia, ou tão só de uma das maneiras que a dita encontrou para me ir mostrando o que cá vim ver, ou fazer. Seja por uma ou por outra, o melhor mesmo é parar e tentar olhar para o melhor que têm os tempos que correm, apesar de não ser tarefa fácil, já que: “Adeus mundo cada vez a pior…”

Trimmmmmmmmmmmmmmmmmm

Entusiasmavam-me  aqueles telemóveis de toques a sério, em vez das músicas pirosas e estridentes daqueles de primeira geração, capazes de me envergonhar por muito cuidado que ponha na escolha, sempre tão difícil: Oiço vezes sem conta as alternativas, e opto por o menor dos males com alguma racionalidade - Esta ouve-se bem mesmo que esteja no fundo mala - que me acalma a frustração de não ter um telefone que me chame com um simples e maravilhoso trimmm. E dizia cá para mim que ainda havia de ter um telefone desses. Quando mais não fosse quando os meus deixassem de trabalhar.

Mesmo assim nunca me passou pela cabeça deixar cair um, como quem não quer a coisa, dentro da sanita, ou atirar-me, com roupa e tudo, para dentro de uma piscina. Fiz isso uma vez e não teve graça nenhuma, pelo menos para mim que saí de lá com mais dez quilos em cima sem conseguir levantar os pés de tanta água albergada dentro dos sapatos. E depois um telemóvel não é um automóvel – não está sujeito às vicissitudes do que anda pelas estradas arriscando sabe Deus o quê… Assim vão durando anos, ao pé de mim que os trato, provavelmente, bem. E quando toda a gente exibe iphone, ipads e sabe Deus que mais Ais, eu continuo com os meus velhos Nokia, um deles, o da viatura, colado com fita-cola e pendurado num kit mãos livres que já saiu do mercado há anos. Todos a tocarem músicas mais ou menos estridentes sem aquele trimmmmm por que eu tanto ambiciono.

Há dois dias a Vodafone resolveu disponibilizar-me um telefone desses, dos que tocam como um telefone deve tocar. É uma sensação extraordinária. Sempre que o telefone toca sinto-me poderosa, séria, como se transportasse, não um simples telemóvel, mas um verdadeiro telefone. Sinto-me uma profissional.

E foi como tal que hoje saí feita doida estrada afora e me espetei de encontro a uma viatura carregada de velhinhos que parou a três metros de uma passadeira. O carro deles não sofreu dano de monta e dispensa arranjo. O meu já não pode dizer o mesmo, coitado. De capô recolhido e faróis rachados nem parece o mesmo. 

O velhote que conduzia o Toyota saiu, apoiado numa bengala, e deixou-se ficar encostado ao carro, respirando com dificuldade, à minha espera. Quando o abordei percebi que de português pouco percebia e declaração amigável, para ele, é algo que se diz amigavelmente e depois se cumpre. Sem saber o que fazer agarrei no meu telefone novo e, arrastando orgulhosamente o dedo pelo ecrã, procurei o número do meu agente de seguros. Ó surpresa! Estava lá tudo! Tudo! Todos os meus contactos importados diretamente do computador! Extraordinária tecnologia! Era um nunca mais acabar de gente! Estavam lá todos. Todos, menos um – o do agente dos seguros.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Por enquanto

A luz entra pelas frinchas das persianas; ouve-se um estore a subir e uma porta a bater; uns pés arrastam um corpo que preferia ter ficado deitado. É manhã. A casa está aquecida, por enquanto…, lá fora brilha o sol mas sente-se um frio cada vez mais pesado. Não chove. Como num filme em slow motion a vida desperta. Manoel de Oliveira perder-se-ia tempos sem fim em duas nuvens cinzentas que mancham um céu quase transparente ameaçando chuva, quando todos sabemos que isso nunca irá acontecer. Não hoje. Nem amanhã. Pelo menos é o que diz o Instituto de Meteorologia. Frio, sem chuva. Provavelmente é ano de seca e os agricultores já se queixam. Vamos lá a ver se têm alguma sorte com os subsídios ou se as consequências da ausência de chuva terão de ser as mesmas do antigamente, quando não havia dinheiros de fora…