quarta-feira, 29 de julho de 2015

Abandonos de mim


Às vezes abandono-me.

Por tristeza ou por preguiça, um abandono de mim como quem deixa o pó apoderar-se da casa para depois ter o prazer de a ver limpa.


Às vezes abandono-me sem pensar se vou ter força para me renovar, sem calcular o limite desse meu abandono, e como mal, durmo mal, rejeito-me prazeres fechando-me ao mundo só para ter o derradeiro prazer de me ver renovar, como as águias, como a fénix, acreditando que todos estes abandonos me protegerão do tempo que passa.


terça-feira, 28 de julho de 2015

Ninguém me liga nenhuma


Não tem idade este sentimento. Esta terrível frustração de não ser para os outros o que se acha que se deveria ser.

Não tem direcção. Tanto faz se estamos a falar de quem nos é próximo, de quem nos é menos próximo ou daqueles que julgamos conhecer só porque todos os dias nos deixam algumas palavras, tantas vezes arrancadas à solidão, nas redes sociais.

Nem tem sentido. Porque só pode ser fruto das baixas auto-estimas com que a sociedade, cada vez mais, nos presenteia.

Não é, por tudo isto, uma razão vectorial. Mas existe. Vive em nós e é real.

Ninguém me liga nenhuma!


E, se ninguém me liga nenhuma é porque eu não presto para nada. Mas como, cá no fundo, às vezes muito no fundo, eu até sinto que presto. Eu até quero prestar. Então são os outros que não prestam porque não olham, não vêem e não merecem que eu fique. E, numa desgarrada tentativa, serei inconveniente, agressivo, insultuoso até. Ou, simplesmente, virarei costas para voltar, logo a seguir, quando ouvir o público que tanto anseio bater as palmas por um encore.


quinta-feira, 23 de julho de 2015

Não Tenho Medo de Nada


"Não tenho medo de nada". E ouvi-la era ouvir-me a mim há alguns anos. Não sei  exactamente o que muda, se cada um de nós se a própria vida mas o medo parece ter fases. Fases e preferências.

Aos nove anos eu morria de medo de tudo o que me rodeava - o vento, o mar, os cães, o macaco que a vizinha tinha preso a uma corda que o deixava chegar ao muro rente ao qual eu tinha de passar, o bode que pastava atado a um poste e que um dia fugiu, o homem que se atravessava, ébrio, no meu caminho... Enfim, tudo ou quase tudo o que existia constituía uma ameaça que me obrigava a correr, a fugir, a tremer que nem varas verdes, a espreitar, a hesitar, a escolher os caminhos por onde passar.

Depois tudo isso se foi e eu tornei-me, creio que por força das circunstâncias, numa corajosa - numa Maria Sem Medo. Ai de quem me ameaçasse! fosse cão, gato ou gente. Ai de quem entrasse sem ser convidado no espaço que era o meu!

E para provar e comprovar essa minha coragem adquirida, a vida tratou de me oferecer vários momentos de alimento egónico. Momentos de glória e garbo que consolidaram ainda mais a minha capacidade de enfrentar qualquer ameaça, de liquidar qualquer inimigo.

A seguir fiquei só e o medo ganhou coragem. Primeiro devagarinho, como quem não quer a coisa, depois determinado, paralisante, sufocador. Não era o mesmo medo de antes, era um medo maior, mais vasto, mais profundo. Era um medo que não desaparecia mesmo que eu corresse. Um medo do qual não se pode fugir porque ele vive dentro de nós e não nos larga assim do pé para a mão. Segue-nos para onde formos, o estupor.

Escusado será dizer que este me deu muito mais trabalho. Um trabalho interior e diário. Um trabalho muito mais profundo e, verdade seja dita, muito mais profícuo. A este medo devo o meu maior crescimento. Mas na vida nada se sabe. Ela é, só por si, uma surpresa constante e os meus velhos medos estão agora, saberá Deus porquê, a voltar.

Ainda ontem foram pernas para que vos quero! Eu e a cadela a fugirmos de três outras, grandes, potentes, zangadas. E as minhas pernas a tremerem outra vez e o meu coração a querer saltar do peito e eu sem saber se fugia por mim ou por ela - a pequena cadela que nem esperou que eu puxasse a trela para desatar a correr ao meu lado, como que sentindo o meu medo ou, quem sabe, o dela.


Hoje, a propósito dessas outras que por aí andam completamente desvairadas e que, fiquei a saber, guardam no ninho cerca de vinte rebentos que dentro em breve correrão pelas ruas ao lado das mães reclamando alimento e território, as minhas pernas tremeram mais ainda e da boca saiu-me a confissão do medo. Desse medo quase irracional que me leva a agir. Esse medo das coisas. Esse medo tão mais pequeno do que outro que há bem pouco tempo consegui combater. Esse medo que,  mais depressa do que o outro, voltará a despertar em mim essa Maria Sem Medo e, tal como a corajosa que habita na mesma rua que eu, voltará a pôr na minha boca palavras que já foram minhas e que por enquanto são só dela: "Não tenho medo de nada."

sexta-feira, 17 de julho de 2015

O Apego e a Traição



"O apego fere a alma da mesma forma que a traição fere o corpo. Ambas as exacerbações ou desequilíbrios geram violências. A violência à alma é contra a própria vida, e responde pela depressão; ao corpo, por sua vez, se expressa contra o mundo externo, no ódio e na vingança."

                                                                                                 Bonder, Nilton, A Alma Imoral

E quem é que se pode gabar de nunca ter sentido uma e outra coisa?! O apego é a forma mais primitiva de amor, a mais brutal, aquela que leva infalivelmente à traição, já que nunca é correspondida porque só pede, só exige, e pouco ou nada dá. Quem ama assim é sempre atraiçoado, mesmo que não seja.

Poucas coisas são tão difíceis na vida como a conquista de um equilíbrio entre a depressão, o ódio e a vingança, de forma a podermos caminhar rumo ao desapego e à aceitação da inevitabilidade, e até da importância, da traição. Sem ela não há evolução. Sem eles - o desapego e a traição -, não há evolução.

Só quando traio o status quo, quando tenho a coragem de questionar a ordem vigente é que me liberto, é que saio do meu conforto para o desconhecido. Só traindo cresço e, para isso, tenho de aprender a amar, tenho de sair de mim, do meu papel, daquele papel que atribui a mim mesma ao longo da vida pela forma como me fui vendo, a mim, aos outros e ao mundo.

Tenho de sair de mim e olhar tudo com um novo olhar. Tenho de reescrever a minha história. Só assim crescerei. Só assim serei feliz e farei feliz quem me rodeia.


domingo, 12 de julho de 2015

A Minha Filha - À Minha Filha


Nunca me senti verdadeiramente importante, disse-me ela ao fim de 35 anos como se disso dependesse o mundo. E dependia. O facto é que dependia. O dela. O mundo dela.

Em que momento das nossas vidas estamos preparados para ser pais ou mães? provavelmente em nenhum, mas há sempre quem consiga superar o desafio de forma mais harmoniosa, mais segura, mais madura até.

Dependerá da idade? Também.

Eu era muito nova quando decidi, pela primeira vez, que seria mãe. Mais nova ainda quando soube que não poderia deixar de o ser. E fui. E teria sido muito mais se tivesse conseguido ultrapassar sozinha - porque foi como sempre me senti, sozinha -, todos os obstáculos que a vida se foi empenhando em colocar-me no caminho.

Se mudaria alguma coisa podendo voltar atrás? Muita! Muita coisa! O que sei hoje é exponencialmente mais do que aquilo que sabia então.


Mas uma coisa é certa - apesar dos pesares, ela ainda vai sendo capaz de me dizer estas coisas. E isso é bom.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

Memórias de Gabriela


Passei hoje pela tua antiga casa tiazinha. Aquela onde viveste durante mais de cinquenta anos a despeito da vontade do senhorio. Aquela onde lutaste contra o tempo. Aquela onde acabaste por vencer tantas adversidades mal sabendo que a maior estava para vir.

Passei hoje pela tua antiga casa tiazinha. Mudaram-lhe a porta e as janelas. Agora são brancas, daquele material novo e frigorificamente branco que em nada condiz com a rusticidade da casa.

O pequeno limoeiro que se deixava cair pelo peso dos limões já não existe. Aquele pequeno jardim cuja cancela nos separava da estrada cada vez mais barulhenta, já lá não está. Agora quem passa no passeio roça essa outra porta de um branco despropositado, violando a intimidade de quem a habitou.

Vieram-me à memória os degraus de madeira, a porta de postigo, o quintal das traseiras. O cheiro do soalho, lustroso de tantos cuidados. Os móveis nórdicos da Helina. A carpete do corredor. Aquela casa de banho onde facilmente nos perdíamos. A banheira de pés altos. O lava loiça de mármore, o fogão em cima da chaminé.


E pensei que gostava de voltar a entrar nessa casa. Não nesta, de porta e janelas despropositadamente brancas, mas nessa outra onde também eu fui crescendo. Pensei que talvez o proprietário estivesse à espera da tua morte para que esse despropositado branco não te ofendesse. E pensei que talvez a Helina quisesse lá entrar, comigo, só para bisbilhotar, para ver até que ponto as coisas mudam. E foi então que me lembrei que ela partiu ainda antes de ti tiazinha e que foi essa a tua maior provação, aquela que nunca conseguiste ultrapassar.