segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Geração fiambre


Sei que já feri suscetibilidades com coisas que aqui deixei mas, por enquanto, vivemos em democracia e parece-me importante a ilusão de liberdade que ela nos dá, mesmo que nem sempre, aos olhos de outros, dela façamos o melhor uso. Para mim, o melhor uso é o simples uso que advém da ausência de medo de ser e dizer o que em determinado momento entendemos ser verdade, sendo que ninguém, em seu perfeito juízo, acredita que a virtude está na estática, que é como quem diz – é virtuoso aquele que diz o mesmo durante toda a vida em relação a uma mesma coisa. É desejável que as pessoas mudem, quer de atitudes, quer de opiniões – faz parte do próprio processo de crescimento, embora muitos de nós nunca cheguem a crescer.

Posto isto, vou avançar com mais uma ideia politicamente incorreta mas sentida, ainda que despropositada no que respeita ao timing que se vive neste país – onde a assistência do Estado está pelas ruas da amargura sem perspetivas de grandes melhorias, muito pelo contrário.

Ainda assim, não posso deixar de dizer que a sobrecarga exigida aos mais novos nos cuidados, cada vez mais prementes, dos mais velhos altera, necessariamente, as ações, as reações e, consequentemente, as relações.

Num mundo perfeito – que infelizmente estamos longe de atingir -, a comunidade, na pessoa do Estado, disporia de todas as condições de assistência adequadas às necessidades dos idosos de forma a aliviar a carga dos mais novos para que estes pudessem desfrutar da companhia dos seus ancestrais sem, com isso e por isso, porem em causa a sua vida profissional, familiar e afetiva.

Avançámos muitíssimo no aumento da esperança média de vida mas não garantimos aquilo que é fundamental para nos mantermos por cá – a qualidade da mesma. Assim, deparamo-nos com gente que, já perto da idade da reforma, com bicos de papagaio, vista cansada e ouvido mouco, ampara pelos corredores dos hospitais outros que os conceberam e que ainda por cá andam. São gerações que passaram a vida a tratar da vida dos outros sempre à espera de um tempinho para tratar da deles. Gente que criou filhos, que já tem netos e que é, muitas vezes, o único amparo dos pais com mais de noventa anos.  

Eu, para eles tenho um nome – a geração fiambre mas, se quiserem, também pode ser queijo, mortadela ou salsichão, desde que viva bem apertada entre duas fatias de pão.



domingo, 27 de outubro de 2013

Tesourinhos deprimentes (os meus)

Março de 2006. Londres estava tão fria e húmida quanto costuma estar nessa altura do ano.
 
Conseguimos dois bilhetes para a primeira fila do Duque of York’s Theatre. A peça, “Embers”, baseada numa obra de Sandor Marai, tinha como protagonista Jeremy Irons.
 
E ali estava eu, sentada na primeira fila, a levar com os perdigotos de um dos melhores actores de sempre e a beber as suas palavras (as palavras, não os perdigotos, note-se), como quem bebe um copo de água fresca depois de uma tarde de secura, ao sol.
 
Foi a melhor peça que vi em toda a minha vida. Apaixonei-me pelo texto quase de imediato e, quando a primeira parte terminou, os meus olhos estavam lacrimejantes e a bexiga, não sei se de emoção se de outra coisa qualquer, a pedir toda a minha atenção. Imagino que tenha passado toda a primeira parte da peça a fazê-lo, mas eu não dei por nada – só me lembro dos gestos, das expressões, das palavras.
 
Assim, logo que o pano caiu e as luzes se acenderam, corri para o wc. Não me recordo se havia fila mas imagino que sim. Toda a minha atenção se mantinha naquele palco pelo que todos os meus movimentos se encontravam em modo automático.
 
Quando chegou a minha vez, entrei. Baixei as calças e fiz todo o esforço que sempre faço por me manter mais ou menos de pé, mais ou menos sentada, sem nunca, Deus me livre, tocar seja com o que fôr na tampa da sanita.
 
Sei que demorei mais do que o habitual – e só esse facto me leva a crer que a minha aflição já tinha horas. E como me conheço bem, decidi que não sairia dali sem ter a certeza de não precisar de lá voltar outra vez – a peça era demasiado importante para eu me distrair com fraquezas próprias da minha condição animal. Tudo naquele palco gritava pela minha humanidade. Pela grandeza da nossa humanidade.
 
Foi quando me inclinei para o lavatório que senti o frio junto à perna direita. Estranhei. Olhei as calças - abaixo do joelho, pela parte de dentro, estavam encharcadas. Uma grande parte do líquido que a minha bexiga guardava com tanta discrição tinha-se depositado na perna das calças.
 
Corri para o exterior do teatro e deixei-me ficar, virada para o vento, na esperança de secar antes do sino tocar. Fiquei gelada e as calças continuaram molhadas. Sentei-me, envergonhada e preocupada com o cheiro que, eventualmente, poderia emanar. Ninguém se queixou, nem mesmo quem me acompanhava.
 
Escusado será dizer que depressa me esqueci das calças.
 
Só quando a peça terminou, os aplausos estoiraram e eu me levantei, é que o cheiro se fez sentir. Para mim era tão forte que só a discrição exímia dos britânicos me foi convencendo de que ele existia só para mim.
 
Assim que cruzei as portas do teatro não vi o momento de chegar a casa e nem a figura do actor, de pé na saída dos artistas, a dar autógrafos a meia dúzia de espectadores, me desacelerou o passo. O que foi pena - perdi a oportunidade de lhe dizer que gostei tanto da peça que os resultados estavam ali, para quem os quisesse cheirar.
 
 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Acções e reacções

Aborrece-me a arrogância, ou a falta de humildade que é quase a mesma coisa. A sobranceria, aquele “olhar de cima para baixo” de quem está convencido que mede mais qualquer coisa do que o outro, sejam centímetros ou metros, aborrece-me. E mesmo que eu imagine que toda aquela postura esconde o medo e, por vezes a solidão, não sou capaz de a relativizar e, pimba, fico igual – todo o desprezo que consigo sentir vem ao de cima e, cá dentro, cresço ainda mais, sobranceiramente, sem um pingo de fraternidade ou complacência.
 
É o mesmo com a agressividade. Tenho-lhe um horror tão grande que, perante ela, antecipo-me sempre que posso, basta que a cheire, nem preciso de a sentir.
 
Perante isto, seria natural uma pequena introspeção e talvez, quem sabe, uma tentativa franca de olhar no outro o mesmo medo, a mesma solidão.
 
Talvez um dia. Talvez no dia em que for capaz de “atrasar” esses meus sentires o suficiente para me dar tempo a pensar. Até lá…

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Acumulam-se os sinais de regresso ao passado

E como não há fome que não dê em fartura (ahahahahaah antes assim fosse…), não bastam os problemas que a equipa de piquetes dos SMAS está a enfrentar, também a PT (este é o momento em que uma lágrima ameaça saltar-me do olho direito) enfrenta estoicamente (ahahahahahaah mais uma vez – isto hoje é só rir) o resultado das fortes intempéries que se fazem sentir por estes lados.
 
Assim, para além da falta de água, que quando vier vai fazer andar o contador de tal maneira que pagaremos pela água que não gastámos o mesmo que outros pagam pelo enchimento das piscinas que têm nos quintais, estamos sem sinal televisivo que, já agora, também continuaremos a pagar.
 
Um dos atendedores da PT, com quem acabei de conversar, atribui as constantes intermitências às condições atmosféricas adversas e diz que, dada a impossibilidade de enviar um técnico - que terá de subir ao telhado para mudar o lugar da antena o qual, ao que parece, não é o melhor mas é aquele que eles entenderam aquando da instalação -, por causa, precisamente, das condições adversas, isto é, da p* da chuva que não pára de cair, o melhor será eu esperar que o tempo melhore para voltar a telefonar e, se nessa altura os sinais – que estão fracos por causa do mau tempo -, ainda se mantiverem baixos, eles vêm. Caso contrário, isto é, se eles melhorarem – que é o que se espera já que a causa é o mau tempo -, eles não virão.
 
Confusos? Não estejam. O que o senhor da PT me disse, grosso modo, foi que o mais certo é termos de passar o Inverno a ver televisão aos soluços.
 
Este é o momento com que todos sonhamos – o do regresso aos nossos tempos de juventude, em que tudo era mais fácil para alguns sem nunca ser verdadeiramente fácil para ninguém. De resto, a única variável que pesa neste regresso é o facto de nós, agora, já termos experimentado outras coisas. Caso contrário, se calhar, até lambiamos o prato como fizémos, sabe Deus porquê, durante cerca de cinco décadas.

Está confirmado o nosso regresso ao passado.

Se outros indicadores não existissem, bastava-me este – estou sem água desde ontem à tarde. E não, não é um caso isolado! Desde que me mudei, há cerca de nove meses, que este acontecimento é recorrente – volta não volta rebenta a conduta principal aqui ou ali. Os motivos são vários mas a chuva é fatal – se chove, rebenta. Por vezes a intervenção é rápida, por vezes é lenta ao ponto de nos permitir uma viagem ao passado quando o país era pobrezinho. E a viagem é tão perfeita que hoje, pelas oito da manhã, ouvi o piquete dos SMAS a aconselhar-me a descontração (vá lá que não fez referência à estupidez natural), com aquele tom com que se ouvia dizer “pobretes, mas alegretes”.
 
Já pensei colocar uns alguidares lá fora mas temo que a chuva não se encontre no seu melhor estado ou, pelo menos, tenha feito aquilo que nós não soubemos fazer – deixar o passado para trás. Que é como quem diz, enquanto andámos a brincar aos desafogados a chuva evolui no mau sentido e agora, que podia substituir a água que corre por condutas obsoletas, deixa-nos assim, de pé atrás com ela.
 
E é na consciência desta viagem de regresso, que quero agradecer a quem de direito o facto de me ter proporcionado uns anos de vida na ilusão de que o meu país tinha evoluido sem hipótese de retorno (há sempre uma hipótese de retorno, está visto). Foram anos que permitiram baixar consideravalmente a taxa de mortalidade infantil; aumentar, consideravelmente, o número de letrados; reduzir, quase a zero, o analfabetismo; aumentar, consideravelmente, a esperança média de vida, bem como a sua qualidade, provando a importância da medicina preventiva. Foram anos sem faltas de água – tirando uma ou outra ocorrência pontual e sem significado. Anos em que a escola até funcionou, os hospitais e os centros de saúde também, bem como a maior parte das instituições. Anos de crescimento, eu diria até, de grande crescimento, no que diz respeito à qualidade de vida. Anos de que eu já começo a sentir saudades porque o meu corpo treme nesta viagem de regresso ao cinzentismo do antigamente, lugar onde eu preferia não ter de voltar porque me custa – vá lá saber-se porquê – viver com faltas de água; com escolas degradadas; com gente mal disposta; com doentes sem tratamentos…enfim…com coisas do passado.
 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Pequenas vitórias que dão, à vida, uma certa côr

Por entre panelas de sopa divago sobre os cinzentos e de como servem para complicar quando aquilo que faz falta é a simplificação - sendo claro que esta se torna falsa por absolutamente superficial se a ela recorrermos sem antes complicarmos tudo bem complicadinho.
 
Talvez eu tenha passado a fase da complicação. Talvez esteja, também para isso, velha de mais. E é, com certeza por isso, que o mundo se me começa a aparecer em dois tons: branco e preto.
 
Branco e preto – duas cores para olhar uma mesma coisa e, eis o ex-líbris da razão, à la carte ! que é como quem diz: escolho aquilo que me apetece, sendo que o que me apetece é o que me faz melhor, o que é bom para mim.
 
Nem sempre funciona mas tenho feito progressos nesse sentido e as vitórias acumulam-se. Quanto ao outro empreendimento, o da recuperação da forma, também segue o seu caminho – mais lento do que a ansiedade mas de acordo com a sensatez – já lá vão cinco quilos. Na fila estão nove. Hei-de lá chegar.
 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Velha de mais

Existe um preconceito qualquer em relação à idade que leva as pessoas a acreditar que é de bom tom exclamar AH! Que disparate! Mas ainda é tão nova! Cada vez que digo que já não tenho idade para certas coisas. E não tenho. Não tenho, não porque haja quem o diga, até porque na cabeça de muita gente isso não existe – as idades são todas próprias para fazermos tudo, que é como quem diz, se eu quiser posso continuar a fazer o  que me dava na real gana aos 15 anos! (mal de mim, digo eu, se me apetecesse fazer as mesmas coisas que fazia em idades já passadas!), mas porque não me apetece. Há coisas que já não me apetecem, ainda que não me recorde em que momento é que deixaram de me apetecer, e há coisas que não me apetecem e que sei exactamente o momento em que isso aconteceu.
 
Por exemplo, lembro-me perfeitamente do dia em que fiz a minha última roda. Estava na praia com os meus filhos, deitei as mãos ao chão, levantei as pernas – mal esticadas com certeza -, e depois de as rodar, levantei-me do outro lado com a certeza, absoluta, que aquela tinha sido a minha última roda. E foi. Eu, que andei na ginástica anos a fio, que participei em campeonatos de ginástica desportiva, fiz a minha última roda aos trinta e poucos anos – altura em que fiquei velha de mais para essas coisas, isto é, altura em que essas coisas deixaram de me apetecer, de me dar gozo.
 
Com cerca de quarenta e cinco anos andei, pela última vez, numa montanha russa. Foi na Disney, em Paris, o meu filho queria andar no Indiana Jones Backward – um comboio ao ar livre que sobe um penhasco literalmente na vertical e depois se deixa cair por ele dando um luping logo a seguir – tudo de costas. Eu, adepta incondicional desse tipo de diversões, não me fiz rogada. Quando o comboio parou o meu filho pensou que eu estava morta de tão branca. Tive de ser levada para um restaurante para ser reanimada. Soube, de imediato, que tinha sido a minha última montanha russa. Aliás, soube-o assim que caí de costas e me vi obrigada a concentrar-me nas batidas cardíacas para não deixar o coração parar.
 
Na sexta-feira passada fui dar a minha última caminhada nocturna. Andei três horas por montes e vales, apanhei uma chuvada que me deixou tão encharcada quanto o dia em que caí, completamente vestida e calçada, dentro da piscina da casa onde vivia, levei com vento e mal consegui ver as paisagens, seguramente maravilhosas, por onde passei. O meu coração protestou com o esforço e as minhas pernas, em certos momentos, quase se recusaram a obedecer. Tive, enfim, todos os indicadores da última caminhada. Quando me perguntaram se tinha gostado, tive de responder que não – foi mais o sacrifício do que o prazer.
 
Porque é disso que se trata, de tirarmos prazer das coisas – ficamos velhos para elas, exactamente no dia em que nos deixam de dar prazer. E só não sabe isto quem ainda não viveu o suficiente, tenha lá a idade que tiver.
 
Por isso, por favor, quando eu me referir à minha idade, tenham pelo menos o respeito de consentir, porque se eu digo que estou velha não me estou a queixar – estou a dizer que tenho a barriga cheia e que por nada deste mundo voltaria atrás, já que esta é, para mim, a melhor idade de sempre. É que eu nunca fugi à vida e, por isso, não me faltam histórias para contar. Agora, apetecem-me outras coisas porque a riqueza da vida mede-se mais pela variedade do que pela quantidade. E, se a aproveitarmos bem, somos capazes de ir saboreando o tempo à medida que ele passa, em vez de insistirmos, por vezes quase estoicamente, em não o deixar passar.
 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Saudades

Esta nova vida tem-me roubado tempo de escrita mas, sobretudo, algum tempo de reflexão. São poucos os momentos em que me posso dar ao luxo de abraçar o silêncio e a solidão e, sem eles, as palavras fogem-me envergonhadas ou tementes do tudo que à minha volta não sossega.
 
Desde que criei este pequeno espaço, nunca o tive tão abandonado como o tenho agora e, contudo, todos os dias penso nele e vacilo e lastimo sobre o meu afastamento, a minha incapacidade de o alimentar. Será que, na vida, não se pode mesmo ter tudo? ou, para que sim, o trabalho é tanto que, sobreviventes como eu, se encolhem com medo de implodir?
 
Gostaria de dizer que estou de volta mas temo uma certa insinceridade. Repare-se que, mesmo agora, a atrapalhar-me as palavras que vêm ao meu encontro, está o alerta das horas que passam e o risco no atraso dos compromissos.
 
Mesmo assim, todos os dias alimento a esperança de que, para a semana, o meu mundo abrande e eu terei, novamente, os meus pequenos momentos e aí…aí sim, regressarei.