segunda-feira, 28 de setembro de 2015

DANTE OU A SERVENTIA DA ARTE



É alto, magro e tem os olhos azuis.

Na boca três dentes.

O quintal onde se move é um depósito de desperdícios amontoados entre as casotas dos dois cães e alguns canteiros onde crescem folhas não sei de quê.

Um tanque de lavar traz à cena o pormenor rústico. As janelas da casa que não é pintada há muitos anos estão cobertas de pó e, por entre as grades ferrugentas, descortinam-se panos amarelados pela força do sol.

Os dois cães que ele mantém presos por curtas correntes às respectivas casotas são de tamanho médio e pequeno. Ambos de feições afáveis e de rabo no ar – ou não é preciso muito para se sentirem felizes ou a nossa passagem dá-lhes alegria.

Ele vem sempre espreitar para ver a Puca, a minha cadela que passeia com uma trela mais comprida do que as correntes com que ele amarra os cães. Espreita para confirmar que ela vem presa e nunca perde a oportunidade de me alertar para o animal feroz que tem no quintal. “Ele é que está preso! Porque se estivesse solto! Ai meu Deus! Dava cabo dela”. E sempre que ele diz isto eu não consigo desviar o olhar do simpático animal que, se não fosse a corrente, correria para nós para que lhe fizéssemos festas. Tivesse eu a mesma certeza no número da sorte grande…

Hoje, quase nem nos cumprimentou. Estava demasiado ocupado.

Ouvi os gritos assim que dobrei a esquina. Lá dentro, ameaçada de “não tarda nada levas uma galheta que nem t’aguentas” estava uma mulher de rosto deformado por um tumor duas vezes maiores do que cara dela. Não lhe consegui ver os olhos, não se virou para mim, só de lado vi o gigantesco tumor que a mulher transporta. Nem sei como é que a cara não lhe cai para o lado.

Na rua não há passeio. Os carros tentam abrandar quando me vêem. Principalmente se a cadela decide que se quer aliviar ali, à beira da estrada, num fio de terra. Ou quando eu me baixo para apanhar o que ela faz.

Sinto a alma encarquilhar-se sempre que dobro essa esquina. Mas é ali que a cadela gosta de ir e, na verdade, as alternativas não são muitas.

Volto para trás. Curvo à direita e na primeira à esquerda. Um reduto de bom gosto num jardim cuidado tranquiliza-me. Demoro um pouco mais na passagem. Paro para lhe absorver as cores. Foi arranjado há pouco tempo. Uma pequena obra de arte. Respiro fundo e esqueço rapidamente as vozes e os cheiros da rua de trás.

Não sei como é que há gente capaz de afirmar que a arte não tem serventia!



DAS AUTO.

Anda uma pessoa a educar crianças para depois ser confrontada com este tipo de comportamentos.

A Volkswagen enganou 11 000 000, assim mesmo – com seis zeros -  de clientes e vários Estados por este mundo fora, isto para não falar nos prejuízos inerentes ao facto de, afinal, os veículos serem mais poluentes do que deveriam ser, ou mesmo totalmente poluentes, o que é ainda mais grave, a não ser que esta história do que é ou não poluente seja também uma conveniência deste ou daquele grupo económico, deste ou daquele lobby. Tudo é possível.

É que os universos paralelos onde nós, comuns mortais, não contamos para nada, existem mesmo. São universos onde tudo se passa de acordo com uma lógica  que nada tem a ver com aquela que pessoas como eu tentam explicar às crianças. Tudo se passa de acordo com a necessidade de manter em equilíbrio algo superior, transcendente mesmo, muito mais importante do que a corja de ignorantes que habita a base desta pirâmide onde o que realmente interessa está lá em cima, no alto, bem longe das nossas vistas e só desce cá abaixo quando alguém, por qualquer rebate de consciência ou por um interesse muito privado, bate com a língua nos dentes. Aí a coisa abana um bocadinho. Mas nada de demasiado sério.

Foi o que aconteceu com a Volkswagen que anda há anos a enganar o pessoal deliberadamente mas onde tudo corria bem, e poderia continuar a correr se não houvesse alguém, lá está, a espernear sabe Deus em prol de quê.

Não sei quem foi o parvalhão, ou parvalhona que se lembrou de pôr a boca no trombone porque agora quem vai pagar as favas são os suspeitos do costume.

O CEO já foi de carrinho com um “prémio” de despedida de 30 milhões de euros - 2,73 milhões por cada automóvel boicotado. Assim, sim, vale a pena ser vigarista. 

(Temos mesmo de repensar os valores que estamos a ensinar às crianças. Será que as estamos a preparar para o futuro?)

Mas tudo se vai compor porque a empresa, mais do que idónea, vai-se reestruturar. E se está a pensar que vão ser apuradas responsabilidade e punidos os responsáveis, é melhor pensar outra vez. 

Evidentemente vão rolar cabeças. Cabeças pequenas, de preferência. Talvez uma ou outra um pouco maiorzinha mas que não exija muito porque o grosso da coisa já foi com o CEO. 

Provavelmente vai-se falar em indemnizações mas os processos vão ser tão morosos que acabarão por cair no esquecimento. 

É preciso um plano para mostrar ao mundo que a Volkswagen assume os seus erros e, por isso, há que tratar dos 11 milhões de veículos “defeituosos” de forma a acalmar as hostes ou a vencê-las pelo cansaço. 

Pelo menos as tácticas já nós temos obrigação de conhecer. São sempre as mesmas...




sábado, 12 de setembro de 2015

Pretérito mais-que-perfeito

Acabei de passar à porta dos escritórios de uma empresa especializada em portas de luxo, modernas e originais, tal e qual os candeeiros lá na rua da Vitória [não se preocupe mais...].

Não, não se preocupe, porque se tiver menos de 50 anos provavelmente não perceberá o paralelismo e isso não tem importância nenhuma. O que interessa aqui é que os ditos escritórios estão ao abandono. Faliram. Eles, a firma e mais umas poucas que aqui na zona vendiam materiais de construção de primeira água.

Como é que eu sei disso? É fácil, foram eles que nos forneceram todos os materiais que usámos nas obras de remodelação da casa de família.

O tempo passa. Inexoravelmente, passa. E tudo o que é novo será velho, ou morto. 

No entanto, tudo o que passa merece lamento. Porquê? Porque tudo o que passa foi perfeito, foi bom, foi belo. Na nossa memória evidentemente.

É claro que nada do que acontece agora se pode comparar ao que já passou. 

Porque ainda não passou.

Perfeitos? só os pretéritos. Os presentes não passam de momentos que até podiam ser mas não são e, mesmo que fossem, não os veríamos.

E como poderíamos, se os nossos olhos apontam sempre noutra direcção?

Aqui para nós que ninguém nos ouve: não me fez grande mossa o abandono das portas.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Descendentes de Viriato

Dos refugiados sírios


Há coisas que não podem ser levadas de uma forma leviana e esta é uma delas.

Esta gente anda a fugir de uma guerra sem quartel. Anda a fugir da morte, da maior das misérias, do horror que uma guerra semeia, e fá-lo com os filhos às costas.

Esta gente luta para salvar a prole da guerra e da fome. Há até quem defenda que esta guerra começou exactamente com uma seca sem antecedentes na história da Síria que transformou a zona agrícola num verdadeiro deserto.

A Síria era um país estável. Onde se vivia normalmente apesar da ditadura. As pessoas  trabalhavam, alimentavam-se, divertiam-se e criavam os filhos pacificamente.


Dos portugueses



Por cá não há guerra. Mas também não abunda o trabalho. O desemprego cresceu consideravelmente e as pessoas passaram a ganhar menos e a pagar mais impostos. O número dos sem-abrigo aumentou e desconhece-se o número real daqueles que passam fome porque continua a existir, por aí, muita pobreza envergonhada.

Somos um povo que viveu uma ditadura de quase 50 anos de que poucos se lembram mas que continua  no nosso imaginário colectivo, deixando-nos de pé atrás. Afinal de contas, e apesar dos pesares, somos hoje um povo livre que pode rezar a quem quiser, vestir o que quiser, dizer o que quiser mesmo que sejam disparates, e não queremos perder essa liberdade. Aliás, não o saberíamos fazer. Pelo menos eu, pela parte que me toca, estaria disposta a morrer por ela.

As mensagens que recebemos sobre o povo muçulmano em geral, venham elas de onde vierem, não são as melhores. A forma como esta religião trata as mulheres é, em certas zonas do mundo, absolutamente escabrosa; o fundamentalismo de certas facções muçulmanas é medieval, e as notícias constantes sobre terroristas que entram disfarçados na Europa onde montam, muitas vezes, quartel, leva muitos de nós a questionar até que ponto corremos riscos com esta entrada em massa, não apenas no nosso país mas na União Europeia.

Da humanidade

Cristãos, islâmicos, hindus, budistas, jainistas, confucionistas e mais as outras centenas de fés que eu não conheço, têm uma coisa em comum – são humanos. Pertencemos todos à mesma espécie e, apesar de ser creio que a única a matar-se a ela mesma ao ponto do genocídio, é também a única capaz de coisas extraordinárias como a extrema humanidade onde se alberga o amor infinito e a compaixão.

Do medo

Eis o único mal que pode dar cabo de toda essa humanidade! O Medo! O Medo é, tantas vezes, a nossa desgraça. Aquilo que nos impede de sermos maiores, de irmos mais longe. Pensem em todos aqueles que o conseguiram e vejam o que é que eles deixaram de ter: Medo.

Nós não estamos em guerra. Não sabemos sequer o que é ter a guerra instalada no nosso país, ver as cidades e os campos destruídos, as nossas crianças mortas nas ruas.

Estes refugiados, estes migrantes vêm de uma situação pior do que a nossa. Uma situação que eles próprios não previram como nós não previmos aquela em que estamos agora e não podemos prever aquela em que estaremos amanhã. Sejamos então humanos. Sejamos fiéis à fama que sempre tivemos de povo acolhedor, de bom anfitrião. Afinal de contas não é a primeira vez que nos entra gente pelo país adentro e nós continuamos por cá.

E se, por qualquer estranho acaso, no meio deles entrarem terroristas, nós estamos aqui para lhes fazer frente. Afinal somos ou não somos descendentes de Viriato?