quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Mentimos muitas vezes


Tementes a Deus mesmo que não creiamos nele, influenciadíssimos por uma moral judaico-cristã que nos castrou até à medula – mentimos muitas vezes. E mentimos tanto que acabamos por acreditar que é verdade o que dizemos em voz alta. 

Contudo, em surdina, no fundo mais escondido de nós e de vez em quando, soltam-se gritos terríveis, verdadeiras ameaças de verdades cansadas da escuridão. 

Depois vêm as culpas, os terrores, as crenças de que estamos sós nesses sentires impossíveis, quando bastava sermos sinceros para percebermos que somos todos, mais ou menos iguais.

A culpa e o medo


Sem darmos por isso tomamos conta de vidas que não nos pertencem, porque vida nenhuma pertence a alguém que não ao próprio que a carrega, pondo e dispondo delas tão naturalmente como se estivesse escrito em pedra nos termos da lógica mais pura, do sentido mais natural deste, por vezes tão longo, caminhar.

Sem darmos por isso tomamos como certo e adquirido tudo o que conseguimos agarrar e chegamos mesmo a acreditar que a isso temos direito. Somos até capazes, tantas vezes, de chorar e lamentar a pouca sorte de não termos conseguido exactamente tudo o que gostávamos que tivesse sido, incapazes de reconhecer o tanto que afinal conseguimos quando a pouco mais de nada temos direito, já que os direitos maiores, aqueles que se estendem para além dos básicos, são coisas que se conquistam, muitas vezes a pulso, com algum sangue, muito suor e outras tantas lágrimas.

E assim vamos pesando, em ombros que deveríamos ser capazes de aliviar. E assim vamos ganhando manhas perniciosas que nos alimentam uma certa surdez que é também uma forma de nos agarrarmos à vida.

E é indescritível a dor que sentimos quando por entre os dedos nos fogem essas posses, esses direitos não conquistados. É como se o mundo desabasse mesmo à nossa frente, diante de toda a nossa impotência Como se o coração nos fosse arrancado do peito e, surdos mais uma vez, acreditamos ouvir o que não foi dito, ver o que não existiu, sofrer o que não foi nunca infligido. É nesses momentos que o Id toma conta de nós e cegos para além de surdos corremos a castigar os que mais amamos. Todas as armas servem, desde que estejam ao nosso alcance. Mas a culpa e o medo são sempre as mais eficazes.

domingo, 23 de dezembro de 2012

O Natal, o Facebook e a solidão


Nada tem apenas vantagens ou inconvenientes e, por isso, o Facebook também não. Mas nem sempre umas ou outros são óbvios ou tomamos deles consciência assim de imediato.

Um dos inconvenientes, pelo menos para mim, é o alheamento em que me afundo sempre que por lá passo. Se me visse de fora diria que me transformo numa idiota estática, de olhar parado a ler por ler sem pensar, sem avaliar, tal e qual aqueles que, sentados em frente ao televisor, se deixam perder nas imagens dos vários canais que vão mudando sem darem por isso e sem pararem em nenhum como se o gozo estivesse nas sombras que passam e não no significado delas, quais personagens platónicas na alegoria do costume.

No entanto o alheamento não é tão absoluto como se poderá supor e os estados de espírito, os revelados e aqueles que acreditamos encobrir, vão entrando no nosso entendimento de tal forma que acabamos a saber como está este e aquele, gente que nem nunca vimos a não ser em fotografia mas que acreditamos conhecer já, e que cumprimentaríamos se as fotos traduzissem a realidade, o que raramente acontece.

Esse conhecimento, ou reconhecimento, dos estados de espírito alheios, é, sem qualquer sombra de dúvida, uma das grandes vantagens do Facebook.

Por muito que tentemos não existe ninguém que viva feliz os 365 dias do ano. Não existe nenhum adulto responsável que não se sinta, uma vez ou outra, deprimido, frustrado, descontente com a vida, arrependido de passos que deu e que não podem já ser desfeitos porque para trás ninguém anda e, diga-se em abono da verdade, o retorno só se deseja muito porque não se pode ter. Todos temos os nossos dias e a tristeza e a frustração são as nossas companheiras indesejáveis e é a constatação dessa realidade que nos pode ajudar a relativizar as nossas tristezas.

Por muito difícil que a vida seja, o pior mesmo é o isolamento, a sensação de solidão. Ora, para aqueles que estão de facto sozinhos, porque os há, e que vão ao Facebook, saibam que afinal não o estão porque, quando mais não seja, existe toda uma comunidade de gente que sofre, tal como cada um de nós, mas que o faz, ou julga fazer, em privado, sem se manifestar. As dores privadas agudizam-se quando se acredita que são únicas – não são. Há sempre uma dor igual ou maior a habitar mais do que uma alma. E se a sensação de pertença se foi com a partida dos que acreditávamos não partirem nunca, saiba-se que pertencemos todos à mesma espécie e, quando mais não seja por isso, não nos será possível existirmos sós.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Um Muito Feliz Natal

De repente vi-me inundada de postais cheios de criatividade, feitos à mão, por assim dizer, empenhadíssimos e personalizados e comecei a sentir-me ingrata e imprestável, eu, que estava convencida que iríamos descansar naquele maravilhoso limbo em que deixámos de nos sentar a uma mesa a escrever postais atrás de postais para depois os carregarmos até ao posto dos correios e lambermos selos até a língua não ser capaz de decifrar outro paladar que não fosse o da cola... eu, que acreditei que bastava um simples e-mail a desejar feliz natal e pronto, vá lá que se dissesse qualquer coisa acerca do ano novo...mas isto...isto é quase um regresso ao passado!

E, já agora, não era suposto o mundo acabar hoje?!

Aqui fica o meu contributo para os desejos de boas festas. Podem crer que me deu uma trabalheira do caraças e não ficou nada de especial. Mas são sinceros, os votos.


terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Medo de morte, da morte


A incapacidade de ser feliz manifesta-se no não reconhecimento daquilo que é bom; na não aceitação do que é menos bom e na focalização em tudo o que é mau.

Por sua vez, todas estas características possuem um corpo físico que apesar de não residir apenas no rosto dado que existem tiques muito subtis que lhes pertencem, é nele que mais se manifestam e podem, consequentemente, ser identificadas.

Por exemplo, uma boca de cantos descaídos é sinal de grave descontentamento – chamo a atenção para o facto deste tipo de manifestação, quando usado e abusado, poder alterar as originais formas físicas transformando uma boca de lábios definidos numa outra em forma de andorinha e de lábios quase inexistentes. Olhos muito abertos e de olhar fixo são também sinal de pânico e existem muitas vezes como gritos de coitado de mim, por favor, por favor, alguém que cuide de mim, ai ai que morro, não aguento mais.

Brincadeiras à parte, manifestações como estas, e outras, fazem-me pensar em certas “verdades” que foram crescendo connosco e nas quais não só nos fomos habituando a acreditar como, com o tempo, deixámos de ter capacidade para as questionar sentindo que é quase, senão mesmo, blasfémia fazê-lo. Uma delas é, por exemplo, o facto de a vida ser uma dádiva que devemos agradecer a cada minuto que passa. Pois que o será para uns e nem tanto para outros, com certeza. No entanto, e curiosamente, apesar de não sermos uns verdadeiros especialistas vivenciais, e até por pouco que apreciemos o facto de termos nascido e estarmos vivos, continuamos com um medo de morte, da morte. Somos, efetivamente, criaturas muitíssimo curiosas!

Dos hospitais públicos e de quem por lá trabalha

Recorrer a um hospital público neste país pode transformar-se numa experiência deslumbrante. 

Em primeiro lugar convém que tenha sido atropelado por um camião, que lhe tenha dado um AVC daqueles que o arrumam logo à primeira ou que o coração claramente lhe falhe, enfim – convém que algo de imediatamente grave lhe tenha acontecido, a não ser, é claro, que seja uma daquelas pessoas a quem um dia passado entre gente atacada por germes de todos os tipos provoque um prazer mórbido ou alguém que acredita que a vida é uma aventura ao jeito do Hollywood e embora lá correr riscos. Nestes casos, recomendo vivamente que se inscreva nas urgências de um hospital público, de preferência o Garcia de Orta, onde poderá passar cerca de 12 maravilhosas horas entre cenários mais ou menos grotescos. 

“O pior hospital do país”! As palavras não são minhas, são de um dos diretores de um dos serviços que conhece outros hospitais e afirma que nenhum iguala a má gestão do Garcia de Orta. 

O pessoal que por lá presta serviço, pelo contrário, e aqui sim, sou eu que o digo, é contudo profissionalíssimo, afável, organizado, estupidamente trabalhador e muitíssimo competente. E foi por isso, e só por isso, que após cerca de 12 horas enfiadas entre as suas inúmeras paredes, de lá saímos com uma resposta precisa para a febre que assola a minha mãe de 80 anos desde a passada 4ª feira e que chegou a ser diagnosticada por uma incompetente do posto médico da Charneca de Caparica, como uma gastroenterite quando, afinal, tem vindo a desenvolver, e a agravar, uma infeção no pulmão direito. 

Sim, eu sei, esta não é a típica situação para se recorrer a um hospital e são casos como este que entopem as urgências. Mas quando o serviço público de saúde tem, em certas localidades, quase nada para oferecer, o que resta a quem não pode recorrer ao privado, senão o hospital onde, apesar de se sujeitar a uma exposição prolongadíssima a todos os “bichos” que por lá habitam, encontra gente disposta a tudo fazer para encontrar o mal que a assola?

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Um passeio pela Disneyland de Paris


A Disneyland de Paris faz 20 anos. Mas mesmo que não fizesse, visitá-la nesta altura do ano é das experiências mais bonitas que se pode ter. Seja-se adulto ou criança. Não vale a pena levar bebés que não possam recordar o que viram a não ser, é claro, que haja a possibilidade de os voltar a levar mais tarde. A Disneyland, mais a de Paris do que a de Orlando, na minha opinião, é o lugar mais feliz da Terra, tal como diz o cartaz à entrada. Passear por lá é tomar um banho de beleza e de alegria e todas as crianças do mundo deveriam ter essa possibilidade porque a beleza entranha-se, e ao entranhar-se lá fica, esperando pela oportunidade de ver a luz do dia. Uma criança que transporte essa semente tem mais hipóteses de vir a ser um daqueles adultos que o mundo precisa – alguém que não descansa enquanto não encher de beleza tudo o que o rodeia.


Estavam muito enganados os realistas. Muito enganados. É na fantasia que reside o segredo da felicidade. É ela que nos pode transportar para a beleza que o mundo tem. E, uma vez transportados, será muito mais fácil a sua transformação. Creio que uma das coisas que os realistas nunca entenderam muito bem foi a possibilidade de a realidade não ser senão uma criação nossa.


Não deixem de levar os vossos filhos a Paris, nem que seja uma vez na vida e, a todas as escolas e associações, pensem nessa possibilidade. Pensem nela porque, ao fazê-lo, podem ajudar, quem sabe, a mudar o mundo.


sábado, 8 de dezembro de 2012

Da nossa humanidade


Há momentos em que reina o desprezo por esta espécie a que pertenço. Momentos em que acredito que o universo teria a ganhar se desaparecêssemos da face da Terra. Momentos em que não acredito na emergência da nossa humanidade.

Mas depois há os outros. Aqueles em que a tal humanidade impera e se espelha nos gestos e nos rostos. Momentos em que é impossível não a ver, não a sentir. Momentos de crença profunda nesta espécie a que pertenço e, nesses momentos e não nos outros, enchem-se-me os olhos de água e comove-se-me o coração como nunca.

Hoje, sentada num lar de terceira idade a ouvir tocar e cantar, foi um desses momentos.


sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Memórias

O anúncio de uma morte inesperada trouxe-me memórias tão fundas que eu nem sabia existirem. Momentos que ficam guardados sem darmos por isso e, talvez por terem sido pouco ou nada visitados, mantêm fortes as cores, as vozes, as expressões e, por vezes, até os cheiros.
 
 
São dolorosas as memórias. Mesmo aquelas que acreditamos serem boas, aquelas feitas dos melhores momentos, são dolorosas porque não passam disso mesmo – de memórias. E recordar não é viver, a não ser que se viva em sonhos.
 
 
É curiosa, muito curiosa mesmo, a forma como a vida apaga as dores e mantém as alegrias. Fá-lo de uma forma tão convincente que transforma em dor o simples passar por ela, o simples passar do tempo. Como se tudo tivesse sido bom. Se tudo tivesse feito sentido. E se tudo tivesse sido melhor, mesmo que pior, daquilo que agora é.
 
 
Quem não sente saudades de nada, não é porque não tenha vivido muito, é só porque ainda não se deu ao trabalho de viajar no tempo e recordar a substância de que é feita a sua vida.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Feliz Natal

A minha filha apresentou este vídeo no Facebook com o comentário de que é a melhor maneira de desejar um Feliz Natal a todos, e eu concordei. Aqui vai. Um muito Feliz Natal para todos. Que haja alegria.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Sinais dos tempos




A minha cadela quando acaba de defecar vira-se de frente para os dejectos e cava orgulhosa e energicamente no sentido contrário. Significa isto que os instintos estão lá todos, ainda que mal direccionados...


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O Natal

Chegou agora mesmo



À espera

Neste país há demasiadas pessoas paradas, à espera. À espera que as coisas melhorem. À espera que a crise passe. À espera que nada de pior aconteça.
 
À espera que o dinheiro chegue para as despesas; que o subsídio seja aprovado; que pelo menos uma resposta haja, de tantos cv que se enviaram pela net.
 
À espera.
 
De vez em quando vem-nos uma ideia para fazermos coisas. Mas quando começamos a pensar na trabalheira que daria, desistimos e deixamo-nos ficar no ram-ram das nossas vidinhas. Tristes. Desanimados. Desmotivados. Sem realmente sabermos que à pala da crise há cada vez mais coisas para serem feitas. Mais pessoas para serem ajudadas. E que cada minuto a mais que ficamos sentados a pensar e a sonhar, é mais um minuto que perdemos e que podíamos ter ganho a ajudar quem precisa.
 
Experimentem passear à noite pela Av. da Liberdade. Olhem as arcadas. Espreitem lá para dentro. Talvez, quem sabe, lhes surjam algumas ideias exequíveis, que os libertem dessa frustração em que deixaram que a vossa vida se tornasse.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Today is a happy day


Em tempos de crise migalhas são carcaças e embora não seja nunca boa política contentarmo-nos com demasiado pouco, o certo é que muito pouco pode fazer muito e um caminho, por estreito que seja, é sempre um caminho.


sábado, 24 de novembro de 2012

Tenho andado muito ocupada.


Entre os 80 anos do pai e a camisola que prometi à filha pelo Natal, trabalho que ainda não consegui que entrasse em automático e que todas as noites faço e desmancho como se não percebesse nada da poda quando tempos houve em que era eu que fazia as minhas, as dos filhos e até, imagine-se, a do marido!, não consigo tempo, nem inspiração, para parafrasear por aqui.

Não estranhem por isso os soluços das minhas passagens, que é como quem diz as intermitências das minhas ausências, porque não? Não me parece que as coisas tenham necessariamente de ser vistas pelas vindas, podem muito bem ser medidas pelas não vindas.

Assim, prometo ser célere na minha epopeia natalícia – tenho um mês para pôr de pé uma camisola para alguém que mede 1, 73 m, e voltar brevemente com um pouco mais de dedicação.

E dado que isto não está fácil, a nenhum nível, desejo-vos tempos felizes e corações ao largo, na certeza de que tudo se há-de compor, apesar dos pesares.

domingo, 18 de novembro de 2012

Nunca é tarde!...


Mais um mito caridoso que inventámos para nos consolar a frustração de ser sempre tarde. Porque é sempre tarde que percebemos, o que quer que seja. Até parece que esse é o único propósito da caminhada – perceber. Mal percebemos, compreendemos que aquilo que percebemos está já demasiado longe, inalcançável. É fundamental, baila-nos na mente, enquanto não percebemos. Só enquanto não percebemos.

A nossa realidade é sempre uma merda. É sempre aquela que não deveria ser, exceto quando deixa de o ser.

Ontem um trabalhador da construção civil disse-me, tranquilo, que a construção de uma casa se começa quando está já no fim. Abençoada simplicidade!

sábado, 17 de novembro de 2012

Ostentação, em tempos de crise, não


Imagino que a intenção seja boa. Ah! E tal!...em tempos de crise embora lá pôr coisas giras no Facebook, mostrar as possibilidades que esta vida nos dá. Embora lá pôr fotos das nossas vivendas com jardins de Inverno e de nós com as nossas toilettes mais sofisticadas, de sorriso nos lábios, a olhar a Torre Eiffel ou o Empire State Building, para levantar os ânimos.

Não meus amigos. Não. Caras sorridentes de gente que está bem na vida mesmo que o resto do mundo esteja a braços com uma das mais tremendas crises da História, não levanta os ânimos, desperta raivas e invejas. E toda a gente sabe que nada disso é bom, para ninguém. Por isso, minha boa gente, metam as vossas viagens e as vossas roupas de marca num sítio que eu não digo, não vão as pessoas pensar que, para além de invejosa, sou malcriada.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Entre a Inveja e a Vaidade(ou o Orgulho)

A vida, essa coisa maravilhosa que é viver como se não houvesse amanhã, está inflacionada.
 
Só mesmo alguém com sangue novo, neurónios frescos, nervos à flor da pele e um entusiasmo de quem acabou de chegar ao paraíso pode acreditar que a vida é um turbilhão de fazeres e afazeres, experiências movimentadas, correrias absurdas.
 
Eu, por mim, passava os dias enrolada numa manta, em frente ao televisor, a viver todas as aventuras de todas as séries que por lá passam. De preferência sem ter de me levantar para comer – alguém que me alimentasse.
 
Isso sim, seria o paraíso.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A caminho de mim e das minhas vontades


Vivo uma vida cheia de incompatibilidades, inconveniências, incongruências, contrariedades e outras ências e ades que me incomodam e me provocam uma vontade que quase me transcende de mandar tudo às urtigas.

Preciso de começar a pensar mais em mim, e só em mim. Preciso de largar esta forma de estar, ou os resquícios dela, que me impedem de dar passos egoístas. Esta forma de ser boazinha quando, provavelmente, nem sou. Gostava de saber de onde veio isto. Onde foi construído este muro que me separa de mim. Prometo que assim que o descobrir, o derrubo.

Ao meu irmão, que acabou de regressar a casa


Se há momentos em que a vida me parece uma bênção, outros há em que ela se me afigura uma amálgama de sacrifícios e momentos que eu preferia não viver – uma amálgama de incompreensíveis dores de coração, e mais valia que o tivéssemos só a ele, escusávamos de sentir estas dores, muito mais dores que tantas outras que inventámos.

Separarmo-nos de quem amamos é sempre tão triste. Tão triste. Podem passar anos e anos e anos, que nunca se apanha o hábito e se não se chora já no momento, chora-se depois, no dia seguinte em que se acorda e ele já cá não está.

Depressa nos habituamos ao que nos é querido. Nunca nos habituamos à sua ausência.

Merda de mundo este que separa quem se quer. Temos caminhado sempre em direcção a tudo o que de nós está mais distante. E mesmo que isto não seja exatamente assim, é assim que o sinto, agora, neste mesmo instante.

(A Puca apaixonou-se por ele e tem estado toda a manhã tão triste quanto nós. Nem come, a pobrezinha.)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Prevariquei, confesso.

Não fiz greve. Não que não concorde com esta forma de luta mas a quem serviria uma greve minha? Quem a veria? Foi nisso que me pus a pensar antes de decidir. Afinal de contas as pessoas a quem presto serviços já me pagaram – fazer greve seria pouco leal dado que recebo antecipadamente. Por outro lado, o meu trabalho é tão solitário, tão retirado, tão no meio do quase nada que a visibilidade da minha ausência seria quase nenhuma. Apenas duas ou três famílias se iriam aperceber da minha greve, mais ninguém. Ora uma greve tem de ter visibilidade. Tem de fazer mossa. A minha insignificância não me permite fazer mossa em coisa nenhuma.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Merkel

 “Já estou mais conformada. A D. deu-me força…vai, vai lá para onde quiseres…” diz ela num tom de voz afectado e cínico, com aqueles trejeitos do “eu sacrifico-me”, quando o que eu precisava de ouvir era: “não te preocupes, vai que eu fico óptima”, num tom determinado, claro, sincero. E neste entretanto anda a Merkel na visita papal! Não, papal não, presidencial. Fez-me lembrar o Salazar naquelas visitas relâmpago que fazia às então colónias portuguesas só para nos fazer acreditar que tudo estava bem, que éramos todos felizes, até mesmo as crianças e as famílias que o esperavam à saída do avião com uma espécie de pompons nas mãos, blusas brancas e saias azuis escuro.
 
Nessa altura havia muito quem acreditasse nesses tons dissimulados velados e cínicos. Tão dissimulados velados e cínicos que havia quem não lhes detetasse outra característica que não a denotativa. Havia muito quem não ouvisse sequer o que diziam as palavras quanto mais o que estava por detrás!
 
Não eu. Nunca eu, que tenho ouvidos de tísica e oiço sempre o que está para lá das palavras. Oiço os olhares, os gestos, os tons e fico aflita, responsável e aflita como se me pertencesse a árdua tarefa de transportar aos ombros a solução para todas as mágoas. As dela, não as da Merkel que essas não me dizem respeito, nem sei se as tem. Mas questiono-me se à noite, à cabeceira, lhe afluirão as mágoas do mundo. Provavelmente não. Afinal de contas tem tanto em que pensar!...

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Classe média


Ao contrário do provérbio antigo, é importante, em termos de justiça, que se olhe mais ao que se faz do que ao que se diz, até porque, hoje em dia, tudo se diz e muito do que se diz é da boca para fora – sim, as palavras já não têm o peso que tinham, já não valem só por si. Um homem já não se mede pelo valor da sua palavra. O que é uma pena, porque por causa dessa desvalorização é que subiram as cotas dos Tribunais que afinal se revelam incapazes para tanta falta de palavra. Daí que o melhor mesmo é medir-se a honra pelo atos e nem todos merecemos louvores iguais, essa é que é essa.

Que justiça pode existir quando alguém que pouco ou nada faz ganha tanto ou mais ainda do que aquele que entrega os seus dias ao trabalho mesmo que não saiba viver de outro modo? Que justiça pode haver quando enriquece e fica impune o ladrão e empobrece o honesto trabalhador a quem não é dada abébia para coisa nenhuma? - ai dele que se esqueça de pagar o seguro ou o imposto do carro, se ainda o tiver.

Creio que entre uns e outros não existem dúvidas. As dúvidas residem naqueles que estão no meio e que são tantas vezes olhados por uns como pertencendo ao grupo dos outros e por outros como pertencendo ao grupo dos uns. Infelizmente, prevê-se que daqui a pouco tempo poucos restarão. Ao que parece trata-se de uma espécie em extinção e, quando mais não fosse, por isso mesmo, merece ser aqui homenageada.

Falo de homens e mulheres lutadores, que estudaram enquanto os outros se divertiam e que agarraram cada emprego como a própria vida, e olharam por aquilo que era dos outros como se fosse seu, defendendo, melhorando, capitalizando, progredindo. Criando emprego e riqueza. Falo de certos gestores, por exemplo, ou arquitetos, ou engenheiros, ou médicos ou professores, que não contam as horas que trabalham diariamente porque trabalham aquelas que são precisas, que têm férias aos bocadinhos e para quem os fins de semana nem sempre existem. Sim, eu sei, isto cheira mais a workholics mas não é isso que está aqui em causa, o que está em causa é que, workholics ou não, são pessoas graças às quais outras trabalham, graças às quais algumas empresas progridem e são, sobretudo, pessoas que vivem anónimas e ganham bem. É verdade que sim, que ganham bem. Por vezes ganham mesmo muito bem e pagam, em impostos, o correspondente àquilo que ganham, o que significa que é nas mãos delas que está a possibilidade de pagar umas quantas reformas e subsídios que suportam quem não trabalha e até, por vezes, quem nunca soube o que isso é.

Acreditem que estes homens e estas mulheres existem. Eu conheço alguns e quero, aqui e agora, prestar-lhes homenagem e dizer-lhes que não se amofinem com os que os olham de lado. É que as pessoas invejam muito e sonham sempre conseguir, sem esforço, aquilo que só com ele se consegue .

domingo, 11 de novembro de 2012

Isabel Jonet


Mais uma vez são tantas as verdades! Creio que o problema mesmo é a falta de precisão, de resto impossível a não ser que se usem dados oficiais, como estatísticas e coisas dessas, tão imprecisos quanto certas pessoas habituadas a movimentarem-se no seio de um determinado grupo e convencidas que o mundo é todo assim. Ninguém vê tudo. Ninguém sabe tudo. E isto não significa que, quando se fala, não se fale verdade. O meio de cada um é restrito e quando falamos e quando exemplificamos é com base nele que o fazemos.

Em Portugal sempre existiram pobres, mas há 50 anos atrás existiam muitos mais do que aqueles que existem agora. Após o 25 de Abril quisemos acabar com eles. Foi talvez o pensamento, a intenção, mais bonita que tivemos até hoje, e tratámos de oferecer a todos mais do que aquilo que podíamos. Talvez, quem sabe, tenhamos ambicionado substituir Salazar como pai da nação e tivéssemos querido mostrar a todos que todos podemos ser pais de todos e esquecemo-nos daquela regra básica da economia que dita que as despesas têm de ser inferiores às receitas se queremos gerir bem a nossa casa.

É claro que esse esquecimento, ao longo destes anos, mudou-nos a mentalidade e, sobretudo, moldou a mentalidade dos nossos filhos que nasceram e cresceram numa abundância que todos tomámos como certa. Mais! que todos tomámos como legítima.

Ontem, em conversa com o meu irmão a propósito de um novo emprego que ele arranjou e que o vai empurrar, ao fim de 20 anos, para os braços de uma entidade patronal (é preciso que se saiba que o meu irmão, que vive há 32 anos na Holanda, trabalhava por conta própria, mas a crise chega a todo o lado e obriga-nos, ou aconselha-nos, a mudar de vida), fiquei a saber, dizia eu, que na Holanda não existe, nunca existiu, subsídio de Natal e que o de férias não corresponde a um salário completo mas à poupança que cada trabalhador faz ao longo do ano com o salário bruto que recebe todos os meses! Prevenidos estes holandeses!...

Eu trabalho num meio pobre. Num desses meios que consideramos pobres. Com crianças que vivem em habitações clandestinas, no meio do mato, sem saneamento básico (não sei já há quanto tempo existem esses bairros, mas já têm nome e caixa postal). Se os virmos na rua, a sair da escola, percebemos que a única coisa que lhes falta é, talvez, a consciência da ilegalidade em que vivem porque, em tudo o resto, são iguais aos outros – ostentam os mesmos telemóveis, calçam os mesmos ténis e vestem as mesmas calças, salvo seja, evidentemente…

Alguns pais destas crianças não têm trabalho. Alguns dizem que são pescadores mas têm de fugir às autoridades sempre que vão à amêijoa porque lhes falta a autorização necessária para o fazerem. Alguns recebem subsídios.

Eu, por vezes, saio do meu canto e vou dar uma mãozinha na distribuição de alimentos aos sem-abrigo de Lisboa. Vou integrada numa associação que o faz há vários anos e, como é natural, vou ficando ao corrente do que se passa com este e com aquele que aparece regularmente nos locais habituais. Aliás, são quase sempre os mesmos e vêm quase sempre no mesmo estado. A pobreza é uma coisa que se entranha nas pessoas e é tão difícil sair-se dela como sair de um buraco escuro. Mesmo que alguém nos puxe para cima encadeamo-nos com a luz e perdemos a segurança que a escuridão nos dava. Muitas vezes voltamos para lá. Mas de cabeça erguida e voz de comando. Sim, porque nós, aqueles que lá vão de sopa na mão, não fazemos mais do que a nossa obrigação. Isso eles não nos deixam esquecer na forma como tantas vezes nos tratam.

À minha volta, neste bairro que habito tão classe média quanto possível, vêem-se carros de alta cilindrada que foram, e aí eu estava capaz de apostar o que não tenho, comprados com dinheiro do banco. E ontem num dos restaurantes da zona, não havia mesas vagas para almoçar. Aliás, não foi a primeira vez que isso aconteceu. Já no outro dia, quando por lá passei, havia gente à espera, à porta.

Tenho vários amigos que estão reformados há vários anos. Reformaram-se antes dos 50. Aproveitaram a oportunidade que lhes foi dada. Eu teria feito o mesmo se tivesse podido mas hoje, de mão na consciência, tentaria compreender se realmente mereço o que todos os meses me entra pela porta adentro sem estar a trabalhar e, provavelmente, estaria mais calada do que estão muitos que, na verdade, têm recebido mais do que aquilo que têm dado apesar de nós sentirmos sempre, e cada vez mais, que merecemos, que nos é devido e, no caso dos nossos filhos, até apenas pelo facto de termos nascido.

É claro que tudo isto é matéria para muita discussão. É claro que as reações dos sem-abrigo podem ser interpretadas à luz das teorias comportamentais e justificadas com a necessidade de se defenderem e manterem, assim, alguma dignidade. É claro que os carros de alta cilindrada e os empréstimos bancários podem ser justificados com as facilidades que os bancos, que vivem dos juros que cobram, ofereceram ao longo dos anos fazendo-nos acreditar que tudo é possível e que todos podemos, independentemente da dimensão da nossa contribuição. É claro que tudo pode ser justificado. Já temos teorias suficientes para isso.

Mas uma coisa é certa, e nisso Isabel Jonet tem toda a razão, – é urgente que aprendamos a viver com o que temos e, já agora, que comecemos a produzir um pouco mais.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Evolução

As coisas têm a importância que lhes damos e muito poucas, se é que há algumas, têm em si agregado um grau de importância merecedor das preocupações que lhes dedicamos. Ao fim e ao cabo (eis aqui uma expressão que uso e abuso precisamente porque tudo tem um fim), todos acabamos da mesma maneira – de pés para a frente – independentemente da vida que levamos, pelo que mais vale levá-la bem, evitando preocupações em demasia e nesse particular podemos, e devemos, ajudarmo-nos uns aos outros.
 
É precisamente por isso que no respeito pelo outro faz parte a atenção do que para ele é importante, ainda que o não seja para o próprio. Ora cai-se muitas vezes no engano do menosprezo por tudo quanto é valor, por vezes até na ausência absoluta de consideração, o que só pode ser, e é, um sinal de ausência de educação, confundindo-se descontração com alheamento e alheamento com egoísmo e prepotência. “Nada disto tem importância para mim. Quero lá saber se tem ou não importância para alguém!”
 
E nesta descontração se perde, estou certa, algo de valioso por ser a única coisa que levamos connosco quando nos despedirmos – a consideração dos outros, a sua lembrança, a memória que de nós deixamos. Tanto aos que ficam como, quiçá, aos que partem. A verdade é que a incerteza do que acontece depois é total e mais vale prevenir do que remediar.
 
Mas nem isso sequer é o mais grave. Cada um sabe de si e cabe ao próprio ser responsável pelos seus atos e por eles responder – nesta ou noutra vida.
 
O mais grave é o exemplo que disso damos aos mais novos, àqueles que pretendemos ensinar, perpetuando, e validando, algo que é contrário à nossa humanização – o desprezo pelo outro, a indiferença ao que nos é, acreditamos nós, alheio, ignorando que nada vive isolado, que tudo faz parte de um todo e que cada elemento que o compõe influencia o conjunto, por muito ténue, discreta ou transparente que essa influência seja.
 
A nossa falta de visão, a nossa incapacidade para perceber quais são, de facto, as consequências dos nossos mais pequenos atos, não é uma bênção porque nos deixa dormir descansados, é uma maldição porque nos impede de evoluir.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

À espera do fim do mundo


Nos EUA anda gente a construir bunkers de todos os tamanhos e feitios para se precaver contra o fim do mundo.

Pergunto-me que tipo de sentimento, ou instinto, nos leva a querer sobreviver seja de que forma for. Não será, creio eu, o instinto de sobrevivência da espécie já que esse, ao que parece, se manifesta em cima do acontecimento ou sexualmente – ainda que já existam algumas teorias que deitam por terra o instinto de sobrevivência como motor sexual (e se não existem deveriam existir).

Assim, que paranóia é essa de levar parte da vida, alguns uma grande parte dela, a arquitetar uma forma de não morrer?! Não será essa uma forma de não vida? Porque é que é tão importante que sobrevivamos num cenário de catástrofe terminal? O que é que a nossa espécie tem assim de tão fundamental? A capacidade de dar cabo disto? Quando aprenderemos a respeitar a vida tal como ela se nos oferece e deixamos essa megalomania de controlar tudo excepto, tantas vezes, nós mesmos?

Por mim, dispenso bunkers. Até porque não me agrada mesmo nada a ideia de viver num mundo destruído. Ele já como está, sabe Deus!... Se me tirarem o pouco que ainda existe de natureza sã, de bondade, de respeito, de ordem, de moral, de ética enfim, de humanidade, prefiro, sinceramente, fazer parte dos que partem.

domingo, 4 de novembro de 2012

Os homens-golfinho


Não é difícil ao homem invejar as capacidades dos outros animais. Somos capazes de gastar pequenas fortunas em mecanismos que nos permitam imitá-los, não para os estudar mas para vivermos as mesmas sensações, ficando assim mais uns passos à frente daqueles a quem temos tomado, sucessivamente, território.

Em que momentos se imita o homem? Quando faz humor, quando se ri de si mesmo.



sábado, 3 de novembro de 2012

Perfumes e companhia

Tão longe da verdade estão aqueles que afirmam que o importante é o corpo, como os outros que gostam de acreditar que é na alma, ou no espírito, que está a salvação, que é como quem diz, o nosso bem-estar – porque é isso que todos e cada um de nós almeja, estar bem, e só está bem quem consegue esse maravilhoso equilíbrio entre essas duas dimensões de que somos feitos. 

Assim, quando nos embrenhamos na difícil tarefa de nos conhecermos, é bom que não conheçamos apenas uma delas e que saibamos, e isso é fundamental, ver a passagem entre uma e outra para que possamos compreender a forma como, mutuamente, se influenciam. 

Que parte de mim é mais vulnerável ao ambiente? Qual, ou quais, dos meus sentidos tem maior poder para alterar o meu estado de espírito? O que é que me atrai nos outros? E o que é que me repele? Qual o nível de esforço que tenho de fazer sempre que estou perante uma situação que me provoca repulsa? 

Eu sou particularmente sensível aos cheiros e aos ruídos. É raro um odor passar-me despercebido e são os cheiros que têm o poder de me despertar memórias – são eles que eu guardo, porque são importantes para mim. 

Quanto ao ruído, esse tem a capacidade de me deixar exausta. Sou capaz de trabalhar 12 horas seguidas, se for preciso, desde que não seja perturbada pelo ruído. Não digo que preciso de silêncio, ainda que dele necessite em momentos de abstracção  mas o que não consigo suportar é o barulho. O esforço que me obriga a fazer para manter a concentração é tal, que fico exausta. 

Já os cheiros têm o poder de me aproximar ou de me afastar das pessoas, e sempre que sou obrigada a suportar odores que sabe Deus há quem transporte, sobe-se-me uma irritação tal que fico completamente inibida de a tratar bem, pelo que me vejo na eminência de simular uma outra fonte qualquer de desconforto só para não ter de mandar, assim à má fila, a criatura tomar banho. 

É claro que já me passou pela cabeça aproveitar esses momentos para avançar mais um degrau na escada ascendente, aquela que dizem que nos eleva até aos céus. Apelo a toda a minha paciência e condescendência, mas o facto de não poder respirar fundo atrasa um bocadinho o processo. Já pensei, inclusive, em andar com um saquinho de cheiros no bolso, ou um lenço de pano, daqueles que caíram em desuso, para levar ao nariz e voltar a ser feliz por uns instantes, mas até aqui o mais longe que fui foi levantar um dos braços e aspirar fortemente o odor da parte de dentro do cotovelo – cheira sempre a perfume. O problema é que nem sempre os nossos cheiros são tão evidentes quanto os dos outros, pelo que não tenho sido lá muito bem sucedida na minha ascensão espiritual.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

O Bob é que sabia (o Marley, evidentemente)

É uma chatice quando as pessoas se movem por conveniências, estados de espírito, preconceitos ou mesmo sentimentos, quando o motor que as deveria pôr em marcha é aquele do bem maior, o que é comum e universal.
 
Nada pior do que a mesquinhez (a não ser a estupidez que é já uma calamidade) para impedir a gente...
 
...d' andar p'rá frente.
 

domingo, 28 de outubro de 2012

Da miséria humana


Se há coisa à qual os supostamente fortes não se podem dar ao luxo de manifestar, é o sofrimento. Principalmente no seio dos supostamente fracos. Aos supostamente fortes não lhes é permitido sofrer ou, na pior das hipóteses, manifestar esse sofrimento. E não lhes é permitido, não porque o mundo lhes aponte um dedo com uma das mãos enquanto a outra segura a barriga que se arrisca a cair de tanto riso, mas porque os supostamente fracos não aguentam o sofrimento de ninguém, nem mesmo o deles. E dado que os supostamente fortes também não conseguem suportar o sofrimento dos outros, calam-se e fingem, para não os ver sofrer.

Assim andam, fracos e fortes, fortes e fracos, engolindo lágrimas e palavras, uns porque preferem que os outros não sofram, outros porque dizê-las os faz sofrer.

O amor


Há sentimentos mais difíceis de digerir do que certos alimentos que nos moem o estômago e nos entopem as entranhas. Há sentimentos inomináveis, extremados, antagónicos, bipolares, que nos semeiam culpas escusadas e irreais, que nos provocam agonias de incapacidade e vertigens de desventura. Sentimentos que nos arrancam a alma e com ela o estômago e o coração aos quais, afinal, está agarrada.

Há sentimentos devastadores, que precisam de grande mestria da parte de quem os sente e de quem os sofre. Mas nenhum, nenhum capaz de nos arruinar se nós não quisermos. Nenhum maior do que nós. Porque o único que vale a pena – o amor – ao contrário do que diz o poeta, que como tantos o confundiu, é incapaz de devastar. Incapaz de levar ou entupir entranhas. Incapaz de semear culpas ou de provocar agonias de incapacidade.

O amor é extraordinário, brilhante, majestoso, gloriosamente humilde e generoso. O amor só é feliz na dádiva. O amor regozija-se perante a alegria e a felicidade de quem se ama, venha ela de onde vier. O amor é sábio. É livre. É poderosíssimo. E é uma pena que nós, simples, mesquinhos e vis humanos, sejamos tão incapazes de o sentir.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Aos novos endireitas. Um grande Ámen para eles


São osteopatas na maior parte dos casos. Embora alguns fisioterapeutas sigam já um percurso mais liberto da medicina tradicional e, digamos assim, mais ativo, o facto é que usam menos as mãos do que estes “novos endireitas” que delas fazem os seus instrumentos de trabalho.

Ontem tive um cá em casa. Pegou-me na mão direita, fincou-me os dedos nas costas da dita e exclamou: Como é que a senhora fez isto?! Tem os tendões todos entrelaçados! Sei lá eu como fiz isso! só sei que as dores são tantas que o braço, tal como a mão, deixou de ter préstimo.

Cerca de meia hora depois estava tudo no lugar com o aviso que ainda haveria de doer. Não disse quanto, e eu acordei às três da manhã convencida que me estavam a arrancar o braço a sangue frio. Não sou maricas, não sou. Sou até daquelas pessoas que sofre em silêncio porque acha que se gritar, ou se se queixar, todas as energias fogem para o grito, ou para a queixa, e lá se vão as possibilidades de alívio. Mas, esta madrugada, as dores foram alucinantes. Amaldiçoei o osteopata, pensei em telefonar-lhe – até porque ele teve o cuidado de referir que o seu telefone está à disposição 24 sobre 24 – para o insultar, para que me explicasse porque carga de água tinha vindo cá a casa para aumentar ainda mais o meu sofrimento.

Agora, algumas horas depois desta primeira intervenção, nem acredito que estou aqui a escrever, que consigo, ao contrário de há escassos momentos, segurar no telefone com a mão direita e até, espantem-se, abrir a porta com essa mão! Não estou curada, mas a mim parece-me milagre e hei de dizer-lhe isso amanhã, quando ele cá voltar para a segunda sessão.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Dores

Tenho dores alucimantes no braço direito! Eu! que já sofri em silêncio e por duas vezes, as dores de parto. Eu, que há anos que me habituei a viver num limbo permanente de pequenas e constantes dores por conta dos prolapsos cervicais que me enrijecem o pescoço e me tolhem os movimentos, dei por mim a chorar de dores, esta manhã.

Uma tendinite mal curada e um movimento mais brusco ao despir, foram os causadores de tamanho sofrimento. Tenho momentos em que a respiração me falta. Mas vim trabalhar, ainda assim. Algumas mudanças meti-as com a mão esquerda. O computador é um suplício e, no entanto, escapo bem aos olhares menos atentos daqueles que me rodeiam.
 
Não há medidores de dor, toda a gente sabe isso, por isso, apesar  deste estado transpirar para os mais atentos, que são poucos, não é possível adinhar o que vai na alma de quem está em sofrimento, quando está em sofrimento.
 
Seria maravilhoso se cada um de nós, antes de tecer qualquer tipo de juizo acerca seja de quem for, tentasse indagar das dores alheias.

Politicamente incorrecto

No domingo passado um amigo confessou-me que não acredita no amor, a não ser, é claro, nesse amor universal que não escolhe objecto, ou no amor filial, também. De resto, dizia ele, isso a que chamam amor e que junta duas pessoas, é outra coisa qualquer, é gostar "como se gosta de sopa, por exemplo".

Achei graça ao pensamento, à comparação que, na verdade, não me pareceu desprovida de lógica. Ao fim e ao cabo, quem gosta de sopa gostará até ao fim da vida e, se num dia ou noutro, a sopa não lhe souber tão bem, será por estado de espírito ou porque a própria sopa não se apresenta como é costume, a gosto próprio. Foi esta a explicação que me foi dada e que me arrancou uma gargalhada, daquelas que se soltam por alívio que é como quem diz, na liberdade de quem se livrou de grilhetas sociais que travam certas manifestações de opinião.

Hoje, através do Facebook, dei de caras com um comentário de um outro amigo, bem mais jovem, também ele sobre o amor, esse amor universal que, supostamente, nos une, ou não. Ou não. Dizia ele:

"caridade não gera senão párias. compaixão não gera mais que invejas. ou são fruto delas. o altruísmo é um egoísta com disfarce e maior necessidade de satisfação pessoal. a diferença é que consegue essa satisfação mais à custa dos outros do que de si próprio. Como uma espécie de fetiche desarranjado ou hedonismo estragado em que o prazer de uma carícia se sente não quando no-las fazem mas quando as fazemos aos outros. E nem sequer pode ser equiparado à generosidade, em que dar, como partilha, é uma coisa que nos serve em conjunto.É uma coisa muito mais mesquinha, pequena, interior, tão escatológica e elementar como lavar o rabo."

É claro que são palavras grossas, pesadas, difíceis de digerir. Mas não o será, também, a verdade? O facto é que, mais uma vez, senti aquela liberdade de poder gritar aos sete ventos uma verdade que pode muito bem sê-lo. Uma possível verdade. Uma muito possível verdade. E quanto mais lia mais me parecia ser exactamente assim, tal e qual como o disse o Miguel, e apeteceu-me ser capaz de decorar as suas palavras porque é tão raro, cada vez mais raro, ouvirem-se opiniões verdadeiramente pensantes, sobre coisas verdadeiramente importantes.

E quando lá voltei, deparei-me com mais um comentário. Este, com que me fico:

"creio que as pessoas vivem com uma série de preconceitos que lhes foram incutidos desde sempre por morais e afins e que aceitam estranhamente como elementares. o grande problema social é a falta de sentido crítico individual. as pessoas aceitam o que lhes é dado e não questionam. a educação não deveria ser ensinar a saber. qualquer macaco aprende a saber. por imitação, por exemplo. a educação devia ser ensinar a pensar. e saber então surge de forma natural mas com uma independência de raciocínio que sabe pôr as coisas em causa para as levar mais além. e para pensar não há macaco que valha, não há imitação que o consiga. pensar é o princípio da criatividade. e a criatividade é o princípio da evolução, do progresso. como o mal, o bem também é uma bola de neve."

P.S. -  Mais do Miguel, aqui.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Range Rover


Dei de caras com o velho jeep - chamo-lhe jeep como chamo kispo a todos os casacos acolchoados e impermeáveis que tenham capuz. Manias antigas, do tempo em que as coisas eram tão raras que chegavam sem nome próprio. Só traziam o apelido. 

Pois, dizia eu que dei de caras com o jeep. Exatamente o mesmo de há…sei lá…vinte anos p’rá aí… Esmurrado do lado esquerdo, o farol traseiro inexistente, a pintura baça. E pensei, Como as coisas mudam!

Recordei aqueles tempos áureos em que transportava pranchas e para-pentes no tejadilho. Em que carregado de bicicletas rumava ao Parque das Nações e aguardava pacientemente a família que por lá passava o dia a dar ao pedal.

Como as coisas mudam! E que triste que é quando mudam para pior. Quando são os tempos áureos que ficam para trás e não o contrário que deveria ser sempre a ordem natural das coisas – começa-se de baixo e ascende-se. É assim que deve ser sempre – começa-se de baixo e ascende-se. Luta-se. Estuda-se. Trabalha-se. E ascende-se.

Mas não. Não. Nem sempre. Não aqui, neste país. Cada vez menos. Aqui descende-se. Perde-se. Anda-se “de cavalo para burro” ainda que se trabalhe mais ainda, que se estude mais ainda, que se lute mais ainda. Descende-se.

E o velho jeep lá estava, parado, à espera do mesmo dono que há cerca de vinte anos, mais coisa menos coisa, o conduz. Já não tão feliz, já não cheio de crianças e pranchas e para-pentes.

domingo, 21 de outubro de 2012

Qual famílias alargadas qual carapuça!


Entornar vinho é alegria. Pisar dejetos caninos, dinheiro. Atribuímos benfeitorias às coisas chatas e, muitas vezes, avançamos azares a coisas tão inocentes como passar debaixo de uma escada ou deixar que as facas se cruzem.

Nesta linha de raciocínio, digo eu porque posso, entendemos encontrar graças e convenientes vantagens naquilo que designámos “famílias alargadas”. Que giros que são os meus, os teus e os nossos e aqueles que não são bem irmãos mas irmãos de irmãos e primos de primos, famílias tão extensas e diversificadas e distantes que dificilmente caberão numa só casa em épocas de culto como, por exemplo, o Natal.

Graça mesmo só encontram aqueles a quem convém, de uma forma ou de outra, esse estado de coisas, porque nunca ouvi nenhuma criança ou adolescente regozijar-se com a separação dos pais e aceitar de ânimo leve madrasta e padrasto sem um mínimo de resistência ou uma dor bem escondida no centro do coração. Geralmente dão adultos resignados que não perdem uma oportunidade de recordar como as coisas eram “quando éramos uma família”.

Para essas pessoas não existem famílias alargadas. Existe perda e separação. Desmembramento e dor.

Por vezes, quando a coisa se dá muito cedo e cedo se forma uma outra família que cria e acolhe como se nada, ou quase nada, se tivesse passado, a coisa compõe-se. Ainda assim, mais ou menos, porque em nenhuma circunstância se apagam as perguntas sem resposta, os “porquês” e os “comos” – ninguém substitui um pai e uma mãe que se amam e criam, juntos e até ao fim, os filhos que geraram.

Posso não ter aprendido muito, mas isso eu aprendi. São dores que não passam nunca. Despiques que não cessam. Vontade de partir os filhos ao meio, esta metade é minha, esta é tua. Ciúmes que roem. Invejas que tentam a todo o custo respirar.

Não, não é verdade que o vinho entornado em dia de festa seja alegria. Na verdade é uma merda e um trabalhão – uma interrupção; um corte. E quanto ao pisar dejetos caninos, hão de me dizer quantos ou quantas enriqueceram depois disso. A não ser que o segredo esteja na conservação dos mesmos na sola do sapato. Só se for isso. Mas, a julgar pelas pedras que vamos deixando saltar cá para dentro ao longo da vida, eu diria que essa não é, seguramente, uma solução credível.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Depressão


Finalmente teve coragem para abrir o talho e espalhar cartazes, enormes e escritos à mão, pelas redondezas. “Já abriu o talho no Texugo. Com Tudo” – era o que se lia ao contornar as rotundas e à medida que nos íamos aproximando do local.
Lá dentro uma panóplia de arrumações, prateleiras, muitas, balcões, dois e frigoríficos; um fogareiro gigante, daqueles modernos que o carvão é cancerígeno…um espaço de meter inveja a qualquer comerciante. Tudo vazio. Apenas um dos balcões exibia algumas peças de carne.
Entrei para uma perna de peru. Nada.
É claro que os próprios cartazes, escritos à mão e cortados a dentes, só por si já faziam transparecer o esforço hercúleo que o pobre homem teve de invocar para abrir as portas fechadas havia tanto tempo. E depois ele mesmo. De cigarro na mão e olhar no chão. Os ombros a descaírem como quem não acha horizonte nem ao seu nível! Não era para abrir, disse ele. Isto está tudo tão mau. Até o outro, na outra terra, já tinha fechado. Mas não tinha mais onde se agarrar e, ainda por cima, doente, dizia ele. Talvez dos cigarros. Talvez da postura. Depressão é doença. A pior. Tira as forças a qualquer um. Por grandes que sejam vão-se com a vontade.
Não durou uma semana. Voltou a fechar. Na montra, escrito à mão, está outro cartaz – “Vendo esta loja” e, por baixo, um número de telefone que já ninguém descortina porque o tempo levou a tinta.
Nem sabe, o pobre, que mesmo que haja alguém capaz de comprar tal espaço, não saberá como o contactar…

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

a História por devir

Daqui a um ou dois séculos, quando os tetranetos dos nossos tetranetos estudarem este século, conhecê-lo-ão como o século em que os homens ficaram reféns dos mercados - uma coisa suficientemente vaga para não ter fase; suficientemente grande para os tolher; suficientemente poderosa para os subjugar.

E daqui a um ou dois séculos, os tetranetos dos nossos tetranetos folhearão compêndios, elaborarão teses, perderão noites a tentar compreender porque é que os homens se deixaram subjugar por algo que eles próprios criaram. E não compreenderão o porquê dessa inércia, dessa subjugação, desse baixar de braços. 

E, tal como hoje estudamos as crises que nos devastaram no séc. XIV e nas duas grandes guerras, os tetranetos dos nossos tetranetos estudarão a época em que uma grande parte da população europeia se esfumou nas ruas da miséria e de como os que cá ficaram ficaram mais ricos e de como a esta se seguiu mais uma idade de luz e progresso e...

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Medo de vencer


O que mais detesto nos outros é o que mais temo em mim – a fraqueza, a incapacidade de cruzar metas, o terror que de mim se vai apoderando à medida que elas se aproximam. É isso que mais detesto nos outros. É isso que me torna impaciente e intransigente e desapaixonada e impiedosa. E má. Como se a fraqueza se pegasse e a incapacidade fosse uma substância a manter trancada, proibida de respirar o mesmo ar que respiram os vencedores. Uma substância a manter nas trevas a todo o custo – única forma de lhe travar a existência.

Não ma mostrem pois. Não a aflorem sequer que me deixam agoniada.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Quem somos nós?


Que parte de nós é nós e que parte pertence ao que a vida nos obriga a ser?

De onde vêm os medos? E as angústias?

Porque somos inconstantes? Quem em nós semeou desassossego?

De onde vem a esperança?

E o desânimo? Porque é que nuns é tanto e noutros tão pouco?

E a força? O que é a força? Uma espécie de energia filha da vontade, ou uma outra coisa qualquer?

Em que momento deixámos de ser aquela criança que ainda habita dento de nós? Quando foi que a deixámos fugir? O que vemos quando olhamos o espelho? Quem roubou dos nossos rostos aquele sorriso fácil?

Quem somos nós?

O dinheiro, esse monstro insubstituível!


Tratamos o dinheiro, algo inventado por nós numa estreitíssima e direta relação com a produção, que entretanto deixou de existir, como algo que nos é dado pela Natureza e se encontra em vias de extinção!

Das duas uma, ou temos em nós  uma grande dose de masoquismo ou somos completamente desprovidos do génio que habitava os nossos antepassados e que lhes permitiu inventar esse monstro que nos mantém presos numa altura em que precisávamos de ser capazes de inventar uma outra coisa qualquer.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O que me entristece


O que me entristece, é não poder dizer aos meus pais, e aos meus filhos, Não se preocupem, vai correr tudo bem. Isso é que me entristece! E saber cada vez mais diminutas as probabilidades de ver sorrisos nos rostos dos meus amigos. Isso é que me entristece!

Sei lá eu se vai correr tudo bem! Espero que corra. Mas sei lá eu se vai correr! Portugal andou anos e anos a acreditar que a sua salvação estaria na fé e olha o que aconteceu – no momento, praticamente no momento, em que tudo se concretizava, pimba. Tudo por água abaixo. Está visto que isto não vai lá com fé. Não, não me parece que seja a fé a salvar-nos.

Acho que temos de fazer mais qualquer coisa para além da reza – temos de mostrar que estamos verdadeiramente empenhados. Verdadeiramente empenhados em andar para a frente. Verdadeiramente empenhados em crescer. Verdadeiramente empenhados em não nos deixarmos governar por outros interesses que não os nossos – os da maioria que somos nós; os de quem realmente trabalha. Os nossos. Os nossos interesses. Os interesses dos portugueses; e dos gregos; e dos espanhóis; e dos italianos; e dos franceses; e dos holandeses… Os interesses de quem trabalha e não de quem não sabe, nem nunca soube, o que isso é. Não os interesses de quem tem construído a vida à custa de especulações, compadrios e vigarices. Não os interesses da bolsa ou dos mercados, essas entidades virtuais e anónimas que encerram em cápsulas meia dúzia de vampiros que sabem que no momento em que de lá saírem sucumbirão. Mas os interesses de quem trabalha. De quem é gente que nasce e morre; que come e dorme e ri e chora e ama e luta e pensa e cria e É. Os nossos interesses.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Realidades


Há certos rostos que guardam olhares tão limpos, tão puros, que é praticamente impossível ficar indiferente.

Sempre que me cruzo com esses rostos sinto que há salvação. Que há saída para todas as crises. Até a da nossa humanidade.

Avó e neta


Há laços que unem as famílias e que estão para além das parecenças fisiológicas. São laços de cetim, que facilmente se desatam mas permanecem esvoaçantes, pontas soltas incapazes de se afastarem, prontas para se unirem outra vez, a qualquer momento.

Há cenas que se repetem, mas não em demasia… Há cenas que se aparentam, como as pessoas, e que, tal como as pessoas, se apuram e aperfeiçoam com o tempo, com a história, porque ao contrário daquilo que os mais pessimistas gostam de fazer crer, a memória existe e protege-nos de muitos males.

Assim, que se repitam todas as alegrias. Que se redobrem, se apurem, se aperfeiçoem, porque o passado só serve mesmo para isso - para nos ensinar a sermos melhores.


6 de Outubro de 2012
9 de Março de 1957


9 de Março de 1957
  
6 de Outubro de 2012

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Casou-se a filha


No rescaldo de tantos acontecimentos importantes implanta-se um vazio difícil de atenuar. No centro, um casamento. O da filha. E que casamento pode ser mais importante que o da filha? O nosso talvez. Mas não foi. Não foi porque não foi tão vivido, tão sinceramente assumido, tão comprometido e alegre como o da filha, que apesar de não ter sido um casamento religioso teve um cunho de uma tal humanidade que dispensou, sem qualquer tipo de benevolência, o papaguear por vezes tão ultrapassado de certos padres.

Foi lindo.

E foi lindo pelo empenho que nele foi posto e que a senhora do registo sentiu e por tal esteve à altura. A minha filha sonhou com uma cerimónia assim, e concretizou-a numa cumplicidade tão absoluta que me deixa o coração a transbordar de alegria. Ela conseguiu. Vai ser feliz. E se mais nada na vida se concretizar, que os meus filhos se encontrem, neles e num outro, e que sigam a dois a estrada da vida, é já suficiente.

Da Holanda e de Londres vieram tios e primos. Veio uma amiga do Brasil.

Novos, menos novos e alguns já velhos juntaram-se para dançar para os noivos. A noiva teve direito a uma serenata e eu andei toda a tarde a conter as lágrimas que teimavam em sair do peito e a dar cabo da maquilhagem.

Por estes dias a casa transbordou, como o coração. E hoje, depois de uma mesa cheia no jantar de ontem, está novamente silenciosa.

Já tenho saudades de todos.










terça-feira, 2 de outubro de 2012

Cenas de um quotidiano em franca mudança ou a quinta dimensão afinal existe mesmo

À minha frente as luzes de travão de um chaço com mais de vinte anos não param de acender. Ao volante um homem, jovem ainda, boceja antes de estancar a viatura no meio da estrada. Eu preparo-me para praguejar quando uma ovelha dispara numa correria incomum estrada fora e dois negros a perseguem a uma distância suficientemente larga para não a conseguirem apanhar. À beira da estrada, um outro negro segura a corda de uma outra ovelha que tenta a todo o custo seguir o mesmo caminho da primeira. Neste entretanto, o metro de superfície desliza, indiferente aos acontecimentos.

domingo, 30 de setembro de 2012

Borboletas no estômago


A todos aqueles que estremecem com a simples referência à infância que foi a deles. Àqueles cujas memórias desses primeiros anos de vida são as mais queridas, as que provocam borboletas – sim, há memórias que provocam borboletas na boca do estômago. A esses, cujo regresso é tão desejado que basta um cheiro um nome uma imagem, quero dizer que é possível. É possível voltar a sentir essas borboletas, essa confiança, esse conforto que a infância deu, a quem deu. É possível, sim. Mas esse retorno não é gratuito – traz consigo a dor de não saber o que fazer a tudo o que está no meio, entre o que foi e o que é.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Insurreição política desarmada


Há algo neste padre que me entusiasma e algo que me faz ficar expectante. Creio que se trata do entusiasmo do poder e da expectativa das coisas virem a melhorar - aquela que me fez ficar em casa até ao passado dia 15. 

O poder é embriagante, seja para os governantes seja para as massas e eu sou demasiado racional para me deixar levar assim, tão facilmente (?). No entanto, é bem capaz de ser de boa utilidade guardar esta espécie de discurso despertador de sentimentos antagónicos. Quem sabe não será útil num futuro próximo e, para além disso, há nele uma verdade indiscutível - as massas detêm um poder que raramente usam e do qual, muitas vezes, nem têm consciência.

Consciencializemo-nos pois.





quarta-feira, 26 de setembro de 2012

"Você é tão linda"

seguido de um nome, lugar, número de telefone escrito duas vezes, uma por baixo da outra como se fossem dois, e um pedido de desculpas: "Desculpe se a ofendi", não é, de todo, aquilo que esperamos encontrar preso no limpa pára-brisas. Publicidade; ofertas de compra; multas; admoestações...tudo, menos declarações de opinião(?) muito menos quando já se passou a barreira do meio século.

Não, não me ofendeu. Mas assustou-me. Assustou-me o suficiente para eu andar uns dias a olhar por cima do ombro. 

Esta nova ordem doméstica


Ontem, queixava-se uma amiga da inutilidade do marido. Desempregado de longa duração, exerce uma atividade ligada ao imobiliário que anda, ultimamente e como todos nós sabemos, pelas ruas da amargura.
Ela, lutadora de gema, que sustenta vai para três anos a casa, a empresa, os vícios…, dizia que o que mais lhe custa é a passividade do bicho que, para além de não se mexer em busca de alternativas, se deixa ficar sentado em frente à televisão à espera que ela chegue, cansada por mais um dia de trabalho, para fazer o jantar.
Préstimo, zero. Mais-valias – nenhumas.
Não está sozinha. E se antigamente eram as mulheres a ficar em casa  a servir o marido. Hoje são eles que se vão deixando ficar, sem servir seja quem for.
Não falo, graças a Deus, destas novas gerações que cresceram a ver pai e mãe a trabalhar e cuja mentalidade se encontra a milhas daquela que nos criou a nós – os cinquentões e por aí adiante, habituados a uma mordomia que as mulheres foram alimentando mesmo tendo de trabalhar fora de casa e levando para dentro da mesma alguns trocos, ainda que não os mesmos porque a trabalhos iguais não correspondiam salários iguais, e nem sei, na verdade, se já correspondem mas temo bem que não, pelo que me resta desejar que as diferenças não sejam tão gritantes quanto o eram há trinta anos.
Falo precisamente dos desempregados de meia-idade para quem nada mais resta do que esperar pela reforma, com ou sem direito a subsídio. Falo desses desempregados sortudos cujas mulheres, muitas delas por iniciativa própria, se vão lançando a trabalhar para que não falte o pão na mesa. É desses que falo. E hoje, quando pelo correio eletrónico recebi uma série de fotos da antiga Crónica Feminina com conselhos tão úteis como: “’A mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas, servindo-lhe uma cerveja bem gelada. Nada de incomodá-lo com serviços ou notícias domésticas’ (Jornal das Moças, 1959)”, veio-me à ideia que se calhar estamos na altura de lançar uma Crónica Masculina com conselhos que ajudem os nossos homens, coitados, a sobreviverem neste mundo de mulheres trabalhadoras. Caso contrário, não sei que futuro os aguarda. É que já não é a primeira vez que oiço por aí desabafos de zanga e verdadeira saturação…

Tapar o sol com a peneira


Numa época em que o défice de atenção, o desinteresse e a desmotivação não param de crescer, vêm uns cérebros brilhantes com soluções à distância convencidos de que o que falta são os métodos passíveis de serem transmitidos via internet ou em cardápios de soluções à la carte ao dispor do consumidor em qualquer escaparate.
Vale tudo menos a assunção da responsabilidade que temos na distância cada vez maior que se interpõe entre pais e filhos;  professores e alunos;  adultos e crianças.
É que é essa distância a responsável pelas crises de indisciplina que tanto brado têm dado nos meios educativos. É essa distância a responsável pelo desinteresse e a desmotivação da maior parte das nossas crianças. É essa distância, essa impessoalidade; essa ausência de afeto que os afastam cada vez mais de nós e daquilo que acreditamos ser necessário ao seu crescimento; à sua preparação para enfrentar um mundo que todos os dias muda e de tal forma muda que ninguém sabe, nem prevê, como será aquele que os agora mais do que jovens terão de enfrentar.
Uma coisa é certa – a proximidade, o interesse, o afeto são ferramentas estruturantes preciosíssimas que nenhum ensino à distância poderá algum dia substituir.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A verdade tem muitas caras e esta é, sem dúvida, uma delas

Não sei quem é este senhor, nem sequer sei se existe. Mas o texto é bom e eu dificilmente resisto a um bom texto.

Recebi-o via e-mail, e porque a verdade tem muitas caras e sobre a verdade devemos sempre reflectir, aqui vai,  tal e qual o recebi:



A trapeira do Job
José António Barreiros, advogado
Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente.
Mas houve um tempo em que as pessoas se lembravam, ainda, da época da infância, da primeira caneta de tinta-permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro televisor, do primeiro rádio, de quando tinham ido ao estrangeiro.
Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos, e se tingia a roupa usada, tempos em que se punham meias-solas com protectores. Tempos em que ao mudar-se de sala se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à sua Joana".
E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana pode arrasar.
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.
Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e umgadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status, como a língua nos cães para a sua raça.
Foram anos em que o Campo se tornou num imensoressort de Turismo de Habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave. Houve quem pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro.
O país que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e às vezes nem obrigado.
O país que produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio.
Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente. Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e mais uma trinitária pomba.
Às tantas, os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.
A chegada das lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexisbeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.
Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro, e sempre pela reforma agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo, e já leu oNew Yorker?
A agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende.
Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos instigavam à compra, aoleasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto-autorizado.
Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar dinheiro, vendermo-nos ao dinheiro, enforcarmo-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.
Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental e, nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas, que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E, contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós.
Estamos nisto.
Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós.