sexta-feira, 29 de maio de 2015

Citroën 2CV



Todas as manhãs era um martírio. Quando chovia então nem se fala, era o descalabro. Não bastava ser empurrado, tinha de se incendiar um bocado de jornal e chegá-lo ao carburador - ou a um outro lugar qualquer junto à grelha da frente e que muito possivelmente teria outro nome - para que o estupor pegasse.

Não havia Bala que valesse e eu, com uma barriga do tamanho do mundo, lá o empurrava rua abaixo até ele se condoer de mim e começar a trabalhar. Primeiro aos soluços, indeciso, e por fim determinado levava-me a Lisboa e trazia-me de volta ao final do dia sem protestar, na maior parte das vezes.

No dia seguinte, às sete da manhã, repetia-se a aventura. A barriga cada vez maior. O meu filho a querer nascer e o estupor do carro que nunca pegava à primeira! e nem à segunda e nem à terceira...
Deixou-me ficar mal tantas vezes!

Uma noite, chovia que Deus a dava e a fila na avenida da ponte era tão grande que o automóvel, cansado, desistiu. Tudo nele se apagou. Telemóveis? Não tinham sido inventados ou, se tinham, não estavam à disposição da plebe.

Tranquei-me dentro do carro à espera que a polícia se apercebesse do caos dentro do caos que já existia.

Como a coisa demorasse, fui pedindo a quem lentamente passava que ligasse para a minha casa. Dei o meu número de telefone a mais de quatro condutores. Façam-me esse favor, pedi eu. Que sim, que fariam. Não fizeram.

O raio do carro, cuja bateria não aguentou estar parada tanto tempo com o rádio, as luzes e o aquecimento ligados, assim que levou um empurrãozito rua acima, pegou e seguiu viagem.

Quando cheguei a casa estava tudo num alvoroço, pensaram que nos tínhamos perdido, eu e o automóvel, na chuva da noite.

Já de Verão era outra coisa!

Deixava-se passear de capota aberta! Qual descapotável! Cabelos ao vento!

Ensinou-me a conduzir, o estupor, com aquela manete de mudanças cheia de curvas e contracurvas.

Vendi-o pouco depois do meu filho nascer. Há cerca de 30 anos.


Encontrei-o hoje, como novo, estacionado frente a um parque de lazer, na Costa da Caparica.


quinta-feira, 28 de maio de 2015

Hoje é sempre melhor do que ontem



Não tem saudades aqui do bairro? perguntou-me ela assim que cheguei. E o curioso é que ainda não tinha chegado a meio da rua quando esse pensamento me ocupou, logo seguido daquela sensação que tenho, sempre que regresso ainda que pontualmente ao lugar que deixei para trás - incómodo.

Ao contrário de muita gente,  sinto-me sempre melhor no lugar onde estou do que me lembro de me sentir no lugar onde estava - seja ele um sítio, uma pessoa ou mesmo um estado de espírito. Tudo o que tenho agora é o melhor que já tive e, mesmo que não seja, é isso que eu sinto.

Voltar ao lugar que deixei, traz-me um desconforto tão grande que antes de lá chegar já estou a pensar em sair e voltar para mim. Creio que tem sido esse o meu percurso, agora que penso nisso, em direção a mim, ao encontro de mim.  Assim, quando morrer, já poderei dizer que me conheci, que cheguei a saber quem fui.

Os retornos não são regressos, são recuos. E eu não gosto de andar para trás a não ser que isso seja imprescindível para continuar em frente.

Não, respondi-lhe. Não sinto saudades. Gosto de viver onde vivo.



terça-feira, 26 de maio de 2015

Feliz aniversário




Pensei em fazer uma reflexão como, de resto, costumo fazer. Mas este ano, ou porque já refleti de mais, ou porque finalmente interiorizei que a vida é para ser vivida no momento em que acontece, decidi que não refletiria.

Não quer dizer que este dia deixe de ser, para mim, um dia muitíssimo importante - o meu dia. Aquele dia que vivo comigo, em segredo. Um segredo que só eu e eu conhecemos - o dia do meu nascimento. O dia que comemora os 57 anos de vida em comum.  De zangas, de arrependimentos, de medos, de dores, de alegrias, de incredulidades, de crescimentos - uns mais voluntários do que outros... enfim, 57 anos de vida em comum! Uma vida plena, cheia! Uma vida de caminhos, estradas lisas, carreiros ásperos, veredas acidentadas, becos sem saída de onde, afinal, se sai porque por muito estranha que nos pareça a realidade que no momento enxergamos, o certo é que ela muda de cara com o tempo, quer a gente queira, quer não.

E ainda que eu já tenha percorrido mais de metade do caminho, espero andar por cá o suficiente para terminar o que aqui vim fazer - encontrar aquela paz que desce sobre nós quando tudo se harmoniza, quando tudo está, exatamente, onde deve estar e nós fizemos, exatamente, o que sentíamos que devíamos fazer.

Parabéns a mim.


sábado, 23 de maio de 2015

Charneca da Caparica inimiga das gentes

Ele é carros por todo o lado. Carros, carros e mais carros. Vêm da direita, da esquerda, do centro, sei lá mais de onde!





Na Rua das Areias, que mais parece uma avenida, como em tantas outras o alcatrão acaba junto às entradas dos quintais e os carros estacionam rente aos muros das casas.






As ruas, poucas, que dão a quem anda a pé a alegria de terem um pouco de passeio, arrependem-se passados poucos metros e estimam-nos tão pouco que deles só sobram as empedradas bermas. O passeio em si é leito de ervas daninhas tão densas e altas que expulsam o caminhante mais afoito.





Eu gosto de andar a pé. Gosto de agarrar na cadela e passear, meia hora, uma hora, hora e meia. Aqui, na Charneca da Caparica, principalmente aos fins de semana, os nossos passeios transformam-se em pesadelos. Cuidado! Cuidado! é a palavra que a Puca mais ouve da minha boca e já sabe que este som diz que tem de se encolher rente ao muro que estiver mais perto se não quiser ser atropelada por uma dessas viaturas que corre atrasada para o almoço de família.



É triste. É triste que numa terra tão plana, tão cheia de verde e ar de mar não se possam dar passeios a sério, daqueles que não ficam confinados aos espaços privilegiados mas que se estendem por toda a charneca. Afinal, é uma charneca, deveria poder ser percorrida a pé!

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Cães como flores no jardim!


Vivo num sítio onde as pessoas têm cães como flores no jardim, dia e noite. Há animais que só vejo porque passo aos portões dos quintais e eles ladram, invejosos da Puca que passeia acompanhada, que é acarinhada, que raramente está sozinha e, mesmo quando está - coisa que acontece de vez em quando -, volta para junto das nossas festas e dos nossos sorrisos de felicidade por a vermos.

Vivo num sítio onde vivem cães que não sei a quem pertencem porque vivem sozinhos, isolados, presos nos quintais. Nunca passeiam. Comem, dormem, cagam e mijam no mesmo lugar. Desculpem o vernáculo mas as circunstâncias não permitem outro, é isto mesmo: comem, dormem, mijam e cagam, tudo no mesmo lugar. Já vi donos apanharem as fezes dos respectivos e lançá-las muro acima. Quem quiser que as apanhe!

A Puca, uma cadela que adoptei há cerca de quatro anos, vive connosco e passeia duas vezes por dia. Com a idade tem-se recusado a ir à rua sozinha por isso, quando eu chego mais tarde, tenho de ir com ela.

Hoje cheguei à uma da manhã e fomos passear as duas. Não lhe pus a trela porque ela gosta de correr e quando estou com ela tem por hábito não se afastar muito.

Acontece que os outros infelizes não podem com ela e, quando passamos perto dos portões, ladram desgraçadamente.

Hoje, um velho veio cá fora para me insultar. Diz que vai chamar a GNR porque eu não tenho nada que andar a passear o cão a esta hora!

Não sabia que havia horas para passear os cães! O certo é que o ignorante, que tem um animal, menos animal do que ele, abandonado no quintal a noite toda, acha que eu sou responsável pelo ladrar do dele e dos outros coitados que vivem também abandonados pelos quintais.

A Puca não ladra de noite quando passo por eles. Eu faço o sinal do silêncio e ela obedece. Afinal de contas não tem razões para invejar nada nem ninguém.


Continuamos um país de ignorantes e brutos e, pelo andar da carruagem, a coisa não vai para melhor, o que é de lamentar. Pela parte que me toca, estava convencida que o cinzentismo e o peso da ignorância do Estado Novo tinham acabado. Parece que me enganei. Estão vivos e de saúde. A minha esperança é que morram com os velhos do Restelo. Afinal, nada é eterno.

domingo, 3 de maio de 2015

Sexo e Trouxas D'Ovos


Não é que eu não goste de sexo, que gosto, mas vim o caminho todo a pensar nas trouxas d'ovos só porque ele as esqueceu para se deixar ficar preso ao sexo. Em que é que estás a pensar, perguntei eu, em sexo, respondeu ele, as trouxas d'ovos já eram. A esta hora não me apetecem.

Mas o que é que sexo e trouxas d'ovos têm em comum, perguntam vocês. Nada. Rigorosamente nada, a não ser, talvez , o desejo de alguém que se interessa por ambas, e apenas por ambas, e de tal forma que tanto se lhe dá que venham com hortelã e passas ou a nu, limpinhas, sem nada, só as trouxas feitas d'ovos, como o sexo sem mais nada, sem a confusão do gostas de mim, telefonas-me amanhã ou voltamos a ver-nos. Nada disso a não ser, é claro, se for para partilhar uma ou duas trouxas d'ovos.

Conheço o Francisco há 30 anos e ele foi sempre assim - mais coisa menos coisa. Confesso que a idade tem feito desabrochar o gentleman que vive nele. É um tipo com pinta, lá isso...  Um cineasta. Um romântico acidental que é como quem diz, um romântico capaz de transformar um momento em "aquele momento", desaparecer no dia seguinte e ficar sem dar notícias meses a fio, mesmo que a sua vontade fosse levar-nos com ele.  Um tipo capaz de abanar corações mas que acaba por sair com o dele partido depois de uma série de peripécias e malabarismos difíceis de compreender. Hoje perguntei-lhe o que é que ele queria, o que é que ele realmente queria da vida e ele respondeu-me tout court: sexo e trouxas d'ovos.

Deixou-me de boca aberta não pela surpresa ou desilusão ou seja lá o que for que a resposta pudesse ter despertado em mim, mas pela beleza da frase! Temos isso em comum, creio eu, esse desligamento do que é complicado , essa tendência para ficcionar a vida em imagens, mesmo que essas imagens sejam de palavras e que as palavras, no fim, não queiram dizer grande coisa. Na verdade, se forem harmoniosas pouco importa o que querem dizer, têm de ser usadas - num título, num verso, numa história ou numa crónica desinteressante de conteúdo como esta mas honesta e, espero, fácil de ler. Harmoniosa, como se quer - no ritmo, nas imagens, nos desafios que as palavras, e só elas, nos oferecem.

Sexo e trouxas d'ovos podia muito bem ser o título de um romance ou de um filme. E fossemos nós o país dos subsídios, que já fomos, a esta hora em vez de estar eu para aqui a desencantar palavras para vos dar, estaria o Francisco a desencantar imagens, sequências de imagens, provavelmente sem história - como esta crónica -, para vos oferecer uns minutos de sexo e trouxas d'ovos. Mas os subsídios acabaram, pelo menos aqueles que davam para fazer cinema, principalmente agora que o Manoel de Oliveira já cá não está, e alguém tinha de aproveitar a frase. Aproveitei-a eu.