quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Ano Novo

Está prestes a acabar mais um ano marcado por bruscas mudanças, por medos e incertezas mas apesar disso, ou por causa disso, a vontade que ele acabe não é grande pelo menos na maioria das mensagens que não se recebem.

E se a convicção muitas vezes é fraca quando repetimos que o ano que se avizinha será melhor do que aquele que acaba, este ano ela não é nenhuma e só a força da repetição pode trazer alguma esperança à voz sumida que insiste em desejar que pelo menos não seja pior.

E isto é tão verdade quanto o é o andarmos em crise há anos e o já termos passado por algo parecido ou pior e termos sobrevivido.

Façamos por isso do próximo ano um ano melhor do que aquele que se apregoa por aí.

Que Deus nos dê força e vontade para mudar o que pode ser mudado. Que nos dê tranquilidade para aceitar o que não pode ser mudado e discernimento para distinguir uma coisa da outra.

Sei que não são votos originais mas são os mais completos e importantes que vi até hoje. Não sei fazer melhor e o que vos desejo é aquilo que desejo para mim. E o que desejo para mim é isto. Nada mais. Nada menos.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Tricot

Estimo que com o tempo, e a crise, se recuperem hábitos antigos. Sei de gente nova empenhada em aprender a fazer camisolas, cachecóis e golas, tal qual as avós há mais de meio século.

Eu tenho saudades. Já fui muito boa nisto e tempos houve em que as camisolas que vestia eram obra minha. 

Pensei em retomar assim que os afazeres me libertassem um bocadinho. Mas hoje a minha mãe falou-me em comprar lã e o bichinho ficou por cá a seringar-me o juízo. Provavelmente não vou esperar tanto...

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Adaptáveis

Nem todos avançam realmente na linha da vida. Há quem fique parado. Quem ande só com o corpo e deixe o espírito preso àqueles melhores anos, os mais marcantes, aqueles em que realmente se viveu. É que mais vale estar lá atrás do que não estar em lado nenhum. E anda por aí muita gente que se não fosse o refúgio do passado arrastar-se-ia quase morta, abandonada ao destino, ao fado, enfim àquilo a que uma pessoa se pode abandonar se quiser.

Por isso se ouvem as mesmas músicas, se vêem os mesmos filmes, que são, de resto,  os melhores de sempre. Tudo o que foi feito depois não vale nada, não é nada, comparado com o que já se fez… o meu avô tinha essa mania, acreditava que já tinha visto tudo. Mas o meu avô era velho… Enfim, cada um faz o que pode com certeza, e o facto de eu estar para aqui a ajuizar das capacidades dos outros não faz de mim uma pessoa melhor, antes pelo contrário. Dizer que o outro pode ou podia isto ou aquilo é muito fácil, podermos nós já é outra conversa bem diferente.

Seja como for, o bom mesmo é conseguirmos ir vivendo enquanto estamos vivos porque como disse uma figura marcante da nossa praça: Estar vivo é o contrário de estar morto, frase que, como muitas outras, pode perfeitamente ser aprofundada, e até justificada e explicada. Tivesse ela sido dita por outro cérebro qualquer e, provavelmente, acabaria por ter mesmo esse destino. Mas foi dita por quem é alvo de chacota, principalmente da parte da intelectualidade. E eu percebo. Ao fim e ao cabo quem é a senhora? que fez ela? em que aspectos contribuiu ela para a sociedade em que está inserida? Estas e outras perguntas se põem quando se fala de gente colunável. Quanto aos que permanecem na sombra e são o grosso da coluna, nascem e morrem anónimos mesmo que tenham muito para dizer. Bom mesmo é ser-se intelectual e conseguir prová-lo, o que também não é fácil.

É assim a vida. Carregada de lutas e de algumas injustiças – aos nossos olhos, pelo menos. Porque aos olhos dos outros, cada um tem o que merece.

Eu, por exemplo, já vou no quinto parágrafo e ainda não disse nada de jeito. Penso que esta incapacidade temporária de manter o fio lógico de um monólogo se pode dever à azáfama multifacetada dos últimos dias. Talvez se chame ressaca, não sei. Atenção que não é só o álcool que embebeda!, ele há outras coisas que têm a estranha capacidade de nos deixar num estado a modos que alucinado e o retorno é sempre confuso.

Antes que diga ainda mais asneiras, quero desejar a todos uma semana de reflexão e preparação para o ano que se avizinha. Temos precisamente cinco dias e meio para tentar fazer um balanço do ano que nos trouxe algumas surpresas, infelizmente não muito agradáveis mas, quem sabe, talvez possamos encontrar forças para meter pés ao caminho e voltar daqui a doze meses com o espírito de que afinal as coisas não correram assim tão mal e que do ano seguinte se espera, se não uma melhoria, pelo menos não um agravamento do anterior. Porque nós somos assim – facilmente adaptáveis. E conformistas. Terrivelmente conformistas.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Chiu!

Dois dias a deitar-me tardíssimo deu nisto. Ferrei no sono depois do almoço. 

Lá fora nada mexe. Como se ao mundo tivesse acontecido o mesmo. A bonança que vem depois da tempestade dos pratos, dos copos e das surpresas, do convívio e da alegria, da partilha que ultrapassa o bacalhau, o cabrito, as fatias douradas e os sonhos.

Este ano voltámos a ter tronco de natal. Há coisas que passam por cima de uma geração para se depositarem na seguinte. São as netas que trazem a lume as manias das avós. As filhas, essas ficam pelo caminho numa tentativa de inovação e contrariedade que do próximo se faz longe porque somos únicos e não nos podemos confundir com ninguém. Que parecida que estás com a tua mãe! Pois sim, mas não serei como ela. E assim se salta – um sim, um não – para no fim tudo vir a dar no mesmo. Herdamos, quer queiramos quer não.

Mas as tradições têm um início, ainda que não saibamos exactamente onde, e ninguém nos disse que não pode estar em nós. Foi nisso que pensei depois da noite de ontem – criar nesta família uma tradição que seja religiosamente seguida ano após ano e que daqui a duas ou três gerações já ninguém saiba porquê, mas porque sim a siga. E como as ideias de nada nos servem se não forem postas em prática, vou ver se comunico aos restantes que este ano se deu início a uma tradição e que a partir do próximo ano todos deverão fazer parte dela.

Vou fazer isso, mas não agora. Estão todos a descansar.

Chiu!, pouco barulho.



sábado, 24 de dezembro de 2011

FELIZ NATAL

Com muita paz, muita alegria.

Que seja uma noite de partilha e de amor.

E pronto. É isto. Agora vou ali tratar da consoada que a noite é de família.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O desespero do Ministério das Finanças

Este ano enganei-me na liquidação do imposto único de circulação. Há anos que me habituei a fazer tudo pelo computador e em vez de digitar 30.10€, fiquei-me pelos 30€.

Apercebi-me disso quando precisei de uma declaração que ficou suspensa por mor dos dez cêntimos que tinham passado despercebidos.

Dirigi-me à repartição da minha área de residência e liquidei os ditos.

Alguns meses mais tarde, recebi uma daquelas cartas que me deixam sempre suspensa entre a perplexidade e a curiosidade, proveniente do Ministério da Finanças. Um invólucro-mensagem, em correio registado, com o convite: “é favor rasgar pelo picotado”. Chegou nos finais de Outubro com uma referência multibanco para pagamentos ao Estado que eu utilizaria para liquidar 15€ de multa por me ter atrasado no pagamento dos dez cêntimos.

Por vezes as nossas atitudes devem-se mais ao comodismo do que à razão e, para não me chatear, paguei e calei.

Pois que anteontem recebi mais uma, em tudo igual à primeira, à excepção da referência para pagamento, essa traz outros números mais frescos e elevados. Contudo, o propósito é o mesmo, bem como a quantia a liquidar.

Pergunto-me, curiosa, se no dia em que confundi um 1 com um 0 me terei constituído forte candidata a perseguição fiscal e, se assim for, quantas cartas mais irei receber. É que, ao fim e ao cabo, incomoda-me ser causa de tanta despesa numa época de crise como esta que atravessamos.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Provocações

Quando comecei a descer a rua sabia de antemão que iria ter vários olhos postos em mim. De resto não sei até que ponto não pensei nisso quando decidi vestir aquelas calças brancas, justíssimas!, e aquele casaco pingão, cinzento claro, que me pendia dos ombros realçando a altura do pescoço. Sempre tive orgulho nos meus ombros e no meu pescoço. Considero que têm sido uma mais-valia. Quanto às socas, estavam na moda, eram pretas, de madeira e relativamente baixas.

Não me enganei. Quando cheguei à paragem estava exuberante! toda eu era brilho!
Um habitual companheiro de viagem pôs-se a meu lado e foi avançando a par à medida que a fila desaparecia na entrada do autocarro.

Foi durante esse percurso que aconteceu o que acredito ter sido provocado pelo excesso de ego que provavelmente me turvou a vista e me trocou os pés. A partir dessa ligeira troca nunca mais o dia foi o mesmo. Balancei, repetidamente, para trás e para a frente, trocando cada vez mais os pés mas fazendo tudo o que o meu ágil corpo e as minhas calças demasiado justas permitiam para manter um equilíbrio cada vez mais fugidio. E nesse cai-não-cai avancei alguns metros com o orgulho a impedir-me de esticar o braço para me amparar no vizinho da frente e sem que o meu companheiro me deitasse a mão evitando o pior, ou o vizinho de trás me segurasse.

E o pior aconteceu num voo que teria batido qualquer recorde em qualquer pista olímpica, terminando numa aterragem fenomenal que me transmutou as calças numa espécie de saia castanha sem panos à frente ou atrás, me esfolou consideravelmente cotovelos e joelhos e me obrigou a apanhar um táxi de volta a casa.

A minha mãe, quando abriu a porta e me pôs a vista em cima, convenceu-se que eu tinha sido vítima de atropelamento.

Nesse dia não saí mais de casa. Já lá vão mais de trinta anos, mas nunca mais me esqueci.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Enid Blyton e As Gémeas no Colégio de Stª Clara

Fez doze anos, está no sexto ano e não pode ter uma nota mais baixa porque chora. Antes dos testes tira de mim tudo o que pode e segue agarrada aos livros até o sono lhe bater à porta. É preciso garantir que será a melhor. A melhor, a mais bonita, a mais cool, a mais dread, do bairro que a vê crescer. Tem tudo para ser um orgulho, uma montra.

Hoje entrou com um livro na mão, Patrícia no Colégio de St. Clara. Li tanto Enid Blyton quando tinha a idade dela! Entusiasmada contei-lhe por alto a história das gémeas e das aventuras que tinham no colégio onde andavam. Ela sempre me pareceu uma leitora em potência, apesar de nunca a ter visto ler um livro. Mas como é daquelas crianças que quer saber tudo, que tem uma curiosidade tão ávida e tão próxima da coscuvilhice, não perco uma oportunidade para lhe vender o meu peixe

Pois hoje entrou com o livro na mão. Sentou-se, abriu-o na primeira página e queixou-se que provavelmente teria de o ir trocar pelo primeiro da colecção porque não estava a perceber a história que começava assim…, e lá me leu as primeiras linhas. Expliquei-lhe que, com o decorrer da leitura, perceberia tudo o que precisava de perceber.

Passados alguns minutos, poucos, vi-a entretida com o telemóvel. Perguntei-lhe se não estava a gostar do livro. Não tenho paciência para estas histórias, eu gosto é de violência. Olhei-a um bocado incrédula apesar de conhecer os seus maus modos e a grosseria que de vez em quando lhe salta do rosto fino, mas decidi não ser juíza, agarrar no fio e puxar, tentar ver o que traria na ponta. Suavizei a minha expressão e perguntei-lhe porquê num tom descontraído.

Fiquei a saber que gosta de ver gente “à porrada”, mas que aquilo que gosta mesmo é de assistir a discussões, “violência verbal” foi o termo que utilizou. Porquê? Porque é giro, e pergunta-me se eu não gosto. Não, nunca gostei, a violência é uma coisa que me constrange. Olhou-me com um certo ar de pena, acho que deixou de haver esperança para mim a partir daquele momento.

Dirigiu-se à mala onde arrumou o livro aborrecido e tirou um outro que logo voltou a guardar. Perguntei-lhe que livro era. Deu-mo uma amiga minha. Tem graça, disse eu, pareceu-me igual a um que está naquela prateleira. E dirigi-me à dita com ela no meu encalço, procurando o livro. Como não aparecesse, dirigiu-se à sala de dentro determinada a encontrá-lo no meio dos outros. Nada.

Incomodada pedi-lhe, por favor, que me mostrasse o que tinha guardado na mala. Quando o abri, na primeira página, brilhava a assinatura da minha filha, escrita por mão própria.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Nunca é tarde

Tirou a carta numa época em que as escolas de condução utilizavam, invariavelmente, Volkswagen Beetle, os sinais de trânsito eram pouco mais de meia dúzia e as mulheres ao volante um perigo eminente. Tinha trinta e seis anos, passou à primeira e não, não foi preciso oferecer nada ao engenheiro.

Nos primeiros anos não deve ter tido muitas oportunidades para praticar. Não me lembro de a ver ao volante nem aos fins-de-semana!

Quando eu e o meu irmão começámos a andar de transportes públicos, o meu pai seguiu-nos as pegadas deixando o automóvel na garagem, ao dispor dela que detestava o sítio onde vivíamos. Detestava-o tanto que se recusava a olhar o mar imenso que nos entrava casa adentro. Costumava dizer que estava enterrada viva. Mas era raro pegar no carro!

Aos quarenta e dois anos foi promovida, por força das circunstâncias, a motorista particular. Com a incapacidade do meu pai, restava ela para o transportar onde fosse preciso e, mais do que nunca, era preciso.

Não vás por aí. Vai por ali. Vai, vai, vai…vem, vem, vem… não, não não…arruma aqui...arruma ali... - eram termos incontornáveis. Uma canseira! tê-la ao volante com ele sentado ao lado, a conduzir. 

Há coisa de três ou quatro meses o meu pai deu entrada num lar e a minha mãe passou a ir sozinha às compras, aos correios, ao lar, a casa da irmã... Só ela e o carro que tem mais de vinte anos, por essas estradas fora. Ela, a decidir se segue em frente ou volta para trás. Ela, a virar à esquerda mesmo que seja para virar à direita. Ela, a escolher o caminho que mais se adapta ao seu estado de espírito. Ela, a escolher o lugar para arrumar o automóvel.

Faz oitenta anos já em Fevereiro e ontem virou-se para mim e disse: Descobri que gosto muito de conduzir.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Incapacidades

Entra sem embaraço. Os caracóis artificiais saltam-lhe da cabeça, em desalinho. Vem pedir ajuda. Precisa de escrever uma carta.

Ouve as instruções interessada mas algo dentro dela se opõe como que reclamando a sua incapacidade – então não sabes tu já que não serás capaz de o fazer?! Esta força que a puxa constantemente para trás obriga-a a perguntas repetidas, hesitações, incredulidades…
Volto a explicar, reforçando a facilidade e a importância da prática. Afinal é só uma carta e nem tem de seguir correio fora. Pode sempre ficar pelo caminho, já que é a primeira.
Faz que sim com a cabeça imediatamente antes de um “mas…”que lhe salta do corpo antes de ser pronunciado. As perguntas sucedem-se… as hesitações… as dúvidas… sempre as mesmas.
Viro o jogo ao contrário e pergunto. Ela vai respondendo. Sempre hesitante. Que sabes da instituição para a qual te vais candidatar? Pouco.
Peço-lhe o endereço electrónico. Consulto o site e imprimo-lhe uma página com toda a informação sobre estágios. Repara que a preferência da organização recai nos académicos. Troca académico por curricular, acreditando que um é o outro.  

Esclarece-se e conclui, aliviada, que não vale a pena escrever a tal carta.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Jogos de computador

Era um diabo o estupor do puto. Montado num cavalo de pau passava por cima de toda a cepa e de vassoura em punho distribuía espadeiradas a torto e a direito. Ai de quem se lhe atravessasse no caminho!

Um dia quis por força almoçar lá em casa. Lembro-me de ver a minha mãe a limpar o tecto de onde pendiam fios de esparguete.

Mas amava-nos o sacaninha. Não passava um dia que não aparecesse aos murros à porta a gritar pela minha mãe – XANINHA! XANINHA! ABRE A PORTA XANINHA!

De nada servia que a mãe corresse atrás dele, e não me lembro que o fizesse amiúde, o puto era escorregadio. Só se acalmava quando íamos lá para baixo, para o quintal do prédio, mexer na terra e brincar às pontes sobre o Tejo. Um dia encontrámos um fio de ouro. Nunca se soube de quem era.

Só esta semana é que voltei a ver unhas negras como aquelas que ele levava do quintal. Mas não tenho a certeza que fosse terra. Penso que o mais provável era ser outra coisa qualquer. São raros, já, os putos que escavam na terra ou sobem às árvores. Agora são especialistas em condução em pista, armas de fogo e viagens intergalácticas, nos jogos de computador.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Mal de inveja

Lembro-me da minha avó se referir ao mal de inveja como um dos piores males do mundo. Eu não lhe dava muito crédito. Que mal poderia fazer a uns, a inveja de outros?! Mas ela insistia na urgência de não a suscitar, em circunstância alguma.

Mais tarde cheguei a pensar que ela sofria do mal da repressão. Aquele que assola os povos que vivem cristalizados na possibilidade de denúncia. Não mostres o que tens. Não te atrevas a dizer que estás bem – diz sempre: mais ao menos, vai-se andando…não partilhes o que tens de bom, antes o ma! e se não o tiveres inventa-o, que a urgência é não despertar a terrível inveja.

Hoje conheci-a. Estive frente a frente com ela e, pode até ser que não repercuta o nocivo efeito que a minha avó apregoava, mas que é feia, é.

Quem vive paredes meias com ela sente a sua existência e sofre, conformado, as maleitas que a vida traz. As alegrias, essas, guarda-as bem guardadas acreditando que os que olham não vêem que ali existe algo para ser invejado. 

Mas os verdadeiros invejosos cheiram as bênçãos à distância, por muito bem guardadas que estejam, e deixam-se corroer. O mal de inveja, que a minha avó tanto temia, corrói mais o invejoso do que o invejado.

Ainda assim, não faz mal nenhum darmos ouvidos às avós. Afinal de contas andaram por cá muito tempo e o mundo não mudou tanto assim. Não, no que às gentes diz respeito.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O filho

Tem uns dedos compridos numas mãos de homem. Ao contrário do pai que tem mãos pequenas, quase delicadas não fossem os pêlos que as cobrem. As unhas, essas, têm o formato das do progenitor, quase quadradas não acompanham a linha esguia dos dedos. Quando era mais novo, irritava o hábito que tinha de arrancar as peles secas que as circundam. Sangrava, e as crostas que se formavam no fechamento da ferida pediam constantemente para ser esgravatadas, cada vez mais secas.

Não perdeu esse hábito. Sei-o porque lhe vejo as feridas nos cantos das unhas. As peles por haver. As unhas desprotegidas. Lá nisso, saiu à mãe.

Convém que saibamos em que águas navegamos

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

No rescaldo de um dia estranho (Para a Carolina)

Foi um dia estranho o de ontem. Ia dizer complicado, mas depois pareceu-me impróprio. Estranho. Foi um dia estranho. Daqueles em que as pessoas chocam. Em que as energias andam desaustinadas e os mais improvidentes se deixam desaustinar também.

Um dia esquisito. Capaz de quase sangrar corações. Um dia em que uma morte se deixou anunciar, já no fim, como se viesse dizer pronto, já passou. Um dia esquisito. Um dia em que a vontade me fugiu por brechas, que irresponsável e levianamente deixei que abrissem. Em que um certo mal espreitou exigindo atenção redobrada e cheguei ao fim de peito cansado mas longe, bem longe, da tranquilidade.

Estou melhor agora. Fez-me bem a noite. Apesar de continuar por cá um certo aperto, uma certa zanga. Devem-me desculpas e eu não me porei a jeito para que elas cheguem até mim. Não, nem todas as pessoas desta ou daquela faixa etária são desta ou daquela maneira, mas que existem características comuns, existem, menos boas muitas delas, e a culpa só pode ser nossa que os criámos. E como sou daquelas que se esforça por olhar as imagens que os outros espelham, veio-me à ideia aquela que diariamente transmito da minha mãe velhinha  que não tendo tido, nem procurado, as mesmas oportunidades que eu para crescer, teve as dela que nem imagino, porque dificilmente imaginamos as oportunidades alheias, ou seja o que for que não nos pertence. Veio-me à ideia a presunção que por vezes ponho nas palavras, a forma desrespeitosa como por vezes menosprezo a sua experiência e acabei por sorrir: não há dúvida de que o que vai volta, para uns mais cedo, para outros um pouco mais tarde, mas volta sempre.

E quanto às dúvidas. É tão bonito e politicamente correcto apregoarmos que quanto mais sabemos menos sabemos, o que só é verdade visto do ponto da extensão do conhecimento, i.e., da noção cada vez mais extensa de possibilidades. O que não implica, evidentemente, que não se construam ao longo da vida alicerces assentes no conhecimento que a vida nos foi, amavelmente, transmitindo, através da experiência. 

Defender que não há certezas e afirmar isso como uma certeza inabalável é que é, não só estupidamente contraditório, como revelador de uma ainda muito fraca maturidade.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Gente parva, é o que é...

Melhor ou pior lá tenho sabido lidar com a vida e com todas as rasteiras que me tem pregado. É claro que poucos são os que sentem não terem sido vítimas de rasteiras mas com as rasteiras dos outros posso eu bem, as minhas, pelo contrário, têm-me dado muito que fazer.

Dizia eu que, melhor ou pior, lá tenho sido capaz de lidar com a vida. Com as pessoas, contudo, já não posso dizer o mesmo, e volta não volta lá me aparece pela frente alguém que me tenta com a perda de fé na espécie. O mais engraçado é que apesar de sentir, na pele, o resultado de sentimentos mesquinhos, acabo sempre com uma certa piedade pelo ser em causa, quanto mais não seja pela sua incapacidade de reflexão, introspecção, enfim, o que lhe quiserem chamar.

Pela parte que me toca sei que há gente capaz de me tirar do sério, coisa que seria de somenos importância se não me arrastasse, por breves instantes, para um campo que eu prefiro contornar por não me estar na alma – o dos rancores, das invejas e dos egos mal resolvidos.

Natal



No sábado passado cumpriu-se a tradição e a árvore ergueu-se. Sempre a mesma há mais de quinze anos. Sempre o mesmo ritual, quase sagrado, que desde que as crianças deixaram de ser crianças passou a incorporar almoço em família. Eles vêm, almoçam, enfeitam a árvore e vão, deixando-nos aqui para a olhar e recordar que é Natal, e que este ano estaremos ainda mais perto do espírito da quadra. Com menos prendas e mais gente, que é o que se quer. A família aumentou! Não tanto quanto eu gostaria, mas o suficiente ainda assim, para que continue a aumentar. O que é uma alegria! A maior de todas! Por isso quero lá saber se vão haver prendas de todos. Quero lá saber se as finanças estão apertadas. Vamos ser mais de dez a uma mesa e isso é: ma-ra-vi-lho-so.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Método experimental

Quatro cabos; uma embraiagem; um pedal e cerca de 400 euros, para descobrir porque é que um cabo, da candonga, rebenta em menos de nada!

Não passou pela cabeça destes doutores das máquinas questionarem-se, ao segundo rebentamento, quanto à origem do cabo! Não! Se voltou a rebentar, então é porque a embraiagem – TODA ELA! – está como há-de ir e o melhor mesmo é pôr uma nova.

Afinal não resultou! O despudorado do cabo voltou a rebentar! E porquê meus senhores?! Ora, porque o pedal está gasto! Vai de mandar vir um pedal e…agora sim, talvez o melhor seja mandar vir, também, um cabo de origem porque, agora que ela já pagou a embraiagem nova, talvez valha a pena pôr a hipótese do carrito ser esquisito e não aceitar cabos de imitação. Sabe-se lá! Pode ser que saia à dona que não suporta pechisbeques. 

Agora sim! Agora é que a embraiagem está como nunca! Mas então não era para estar já da última vez?!!! Ah, e tal, é que isto nunca foi só do cabo. A senhora veja bem o estado deste pedal!  

Gostava de ser outra para me ter fotografado a olhar os restos de uma peça desengonçada nas mãos do filho do mecânico, que ele nem apareceu! E dá cá mais euros!

Tive de lhes explicar, com boas maneiras evidentemente, que se eu pudesse trocar as peças todas, comprava um carro novo. Se este cabo voltar a rebentar o que é que vem a seguir? A caixa de velocidades?!

Pagaram vocês?!... Pois é. Nem eu.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Fotografia de família

Pelo caminho vão caindo que nem tordos os automóveis que não aguentam a pressão das infindáveis filas. E já não tem de ser dia útil, pode ser sábado, ou mesmo domingo, que a dança não muda. Será pela súbita escassez de transportes públicos? Será por estarmos no início do mês e termos adoptado aquela mentalidade do seja o que Deus quiser e embora lá enquanto é tempo e ainda se pode? O certo é que são mais que muitos e não há dia ou hora para se fugir do pára arranca que não termina nas portagens da ponte 25 de Abril mas continua, a maior parte das vezes, pela avenida da ponte, quer esta desça para Alcântara quer siga para outro destino.

Ontem levei mais de uma hora para chegar a Lisboa onde o jantar estava marcado para as vinte! Não ajudou a antiguidade que por ora conduzo, sem via verde, sem direcção assistida mas com um motor de meter inveja a muitos mais jovens que vão ficando pelo caminho. Passei por quatro. Quatro, de boca aberta pedindo socorro enquanto os restantes, impacientes, premiam as buzinas na esperança de endoidecer os portageiros e passar sem pagar.

Esperavam-me, e assim que entrei tentei ajudar. Na cozinha fui de encontro a um prato de sopa e logo a seguir, por retaliação, sofri um ataque da gata que morre de ciúmes e não deixa ninguém aproximar-se da dona.

Mas foi já à saída que reparei na pequena foto pendurada na parede.

Enfiadas numa moldura redonda, eu e as minhas primas. Elas de olhar posto na câmara, eu de olhos postos no infinito como se de lá algum bem viesse. Fomos quase inseparáveis durante anos. Aqueles anos em que as pessoas podem ser inseparáveis. Estou de laço na cabeça e a Leonor diz que pareço uma outra qualquer. Mas sou eu, no casamento de quem já partiu diz a Isabel, que eu nem memória tenho do lugar ou do momento.

Parece que durante anos passei por ela sem a ver, a fotografia. E só agora, que mudou de parede, é que dei de caras comigo, menina, de fita nos cabelos, pendurada por um fio numa parede. 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Gala do Fado

O rosto enrugado, de testa franzida e boca em meia-lua, está preso ao televisor na expectativa de regressar ao passado à boleia do fado cantado por outros. Há muita gente nova no fado, não há? Pergunta ela com um certo desconcerto na voz. E à medida que fadistas, músicos e apresentadores vão desfilando no écran, ela repara no vestido desta, no cabelo daquela e nas unhas por pintar! Que gordo que está! Que feio que é! E a dada altura eu sorrio e ela nem percebe porquê e pensa que é pelo músico que se ginga ao som da viola, mas não, é por ela, pela estranheza e sobressalto de não vislumbrar rostos antigos e ser incapaz de se ouvir quanto mais de interpretar o  desconforto. E quando a indago, Mas não está a gostar?! Ela diz que sim, que está. E nesse momento chegam aqueles por quem tanto esperou e a testa relaxa e a meia-lua da boca transforma-se, em quarto crescente.