quinta-feira, 30 de maio de 2013

Pormenores

É um nico de gente. Pelas dimensões deve andar p’raí no primeiro ano, no máximo no segundo. Com muitas dúvidas.
Vive num desses bairros clandestinos sem qualquer tipo de saneamento, construído no meio do mato à semelhança dos seus ancestrais. Só que em vez de palha os pais usaram cimento, tábuas e algumas placas de ondulino.
Não faço ideia se tomou o pequeno-almoço. Temo bem que não. Saiu sozinho, de mochila às costas, em passo p’ra lá de lento. Terá de percorrer cerca de um quilómetro, mais coisa menos coisa. Tem um bom passeio para o fazer. Um passeio que separa a estrada nacional da mata onde habitam outros como ele.
Não sei quais são as suas origens. Talvez Angola. Ou Cabo Verde…eu apostaria mais em Angola, as mães cabo-verdianas raramente deixam os filhos por sua conta e risco.
Vai parando pelo caminho, sem pressa nenhuma de chegar. Fiquei a vê-lo hesitar entre desaparecer na mata ou continuar em frente. Optou pela mata mas não chegou a desaparecer, afinal estava só aflito para fazer xixi. Vê-se que está acostumado a fazê-lo ao ar livre – uma vista de olhos bastou-lhe para garantir que quem passasse passaria por trás e não pela frente.
Enfim, pensei eu, tantos sinais de retrocesso. Não há muitos anos, “onde mijava um português, mijavam sempre dois ou três”… (detesto a palavra mijar. Detesto mesmo. Acho que é a primeira vez que a escrevo.)

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Não é verdade que cada vez gosto menos das pessoas mas é verdade que cada vez gosto mais dos animais

O Ernesto, vítima silenciosa da vaidade humana, esteve prestes a perder uma das patas - intervenção que lhe poderia custar a vida -, por causa de uma argola com que o criador decidiu homenagear o exímio cantor, que ele sem dúvida é, ainda que ultimamente, coitado, tenha recolhido o canto no sofrimento da pata roxa e pesada do hematoma causado por uma homenagem que afinal não lhe pertence, porque ele dela não se apercebe, mas ao criador que com ele poderia ter vencido tantos concursos não tivesse decidido cedê-lo a um amor maior.
Crente na sua recuperação e movida pelo carinho que por ele foi crescendo ao longo destes anos – afinal desde miúda que adoro o Piu Piu e o Ernesto em tudo se lhe assemelha -, decidi tratá-lo com pomadas e amor, e tanto amor que um dia, ao tentar desafiá-lo para uma cantoria, dei por mim a olhar a anilha e a pensar cá com os meus botões que aquilo talvez até se conseguisse tirar.
E foi meu dito meu feito. Tudo indica que a pata do Ernesto sobreviverá a esta desventura que os tratos de polé lhe infligiram, porque uma anilha fechada em torno de uma pata minúscula que evidentemente crescerá, é uma tortura só comparável com as dessas máquinas infernais inventadas na Idade Média para dissuadir bruxas e similares. E quem disser que os animais, mesmo os mais pequenos, não sofrem, não sabe do que fala. Por mim, e ultimamente, bem lhes tenho visto o sofrimento nos olhos e a gratidão nos gestos.
Nos primeiros dias, e enquanto se sentiu miserável, o Ernesto aninhava-se na minha mão e de lá não saía sem uns minutos de palavras doces e festas na cabeça que o animavam a piar, porque para o canto, e por enquanto, a força ainda não chega. Mas há-de chegar. Há-de chegar.

terça-feira, 28 de maio de 2013

O silêncio das ausências

Sabem-me bem os silêncios das ausências. Não de todas, evidentemente, mas de algumas. Há presenças demasiado exigentes e muitíssimo barulhentas. Presenças que tiram de mim tudo o que tenho. E nem sempre o que tenho é muito.
 
Sabe-me bem a paz do silêncio que vive em certas ausências.
 
E enquanto espero, vou saboreando o sossego e o prazer de estar comigo, aqui, no silêncio das ausências.
 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Mais um ano à minha frente, para fazer dele o mais e o melhor que conseguir

Completei ontem 55 anos, e neste segundo dia do 56.º ano que, em princípio, passarei por cá como esta pessoa que sou, nascida já na segunda metade do século passado, no seio de uma família comum, cheia de boas intenções, fruto de um amor moderadamente apaixonado e confiante num futuro promissor, e neste segundo dia, dizia eu, passei em revista alguns dos episódios mais marcantes desta minha jornada e o meu coração sorriu – o nosso futuro não foi promissor no sentido imaginado pelos meus progenitores mas eu sou fruto de todos os obstáculos que nos foram sendo postos pelo caminho e, pelo menos neste momento, não quereria ser outra que não eu.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Sem paciência para a incompetência

Embirro solenemente com amadorismos e atamancamentos. Se se encomenda uma coisa por medida, como um móvel, por exemplo, por que carga d’água é que no dia da montagem nada encaixa?! Se temos uma firma que faz cozinhas, por que carga d’água nos havemos de atravessar com outras feituras, tipo roupeiros num sótão?! Só pode ser por guloseima, isto para não referir a falta de seriedade que é o que me apetece porque se eu não estou habilitada a fazer uma coisa não me atravesso com comprometimentos, agradeço muito a quem me solicitou e explico que, infelizmente, não estou habilitada pelo que não posso garantir qualidade e, assim sendo, não aceito o trabalho. Chama-se a isto ser sério e profissional.
 
Agora, estamos aqui a braços com roupeiros que nunca mais estão prontos, eles correm seriamente o risco de gastar mais do que aquilo que planearam, porque ou conseguem adaptar as peças que trouxeram de forma satisfatória, ou levam tudo de volta que até andam de lado e nós, entretanto, continuamos com a roupa toda encaixotada em cartão, sem saber muito bem o que está a acontecer lá para baixo e sem ter acesso à roupa que já começa a fazer falta – a de Verão.
 
Raios partam os amadores encapuçados nas instalações e nos preços. Não é só por estar cansada desta espécie de acampamento forçado, é que não suporto amadorismos.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Dos cães e dos homens

Há muito quem pense, e sinta, que os cães, como animais que são, devem ser selvagens, livres, autónomos, e que a nós, humanos, cabem as culpas das extraordinárias alterações infligidas ao seu meio natural, o que não deixa de ser verdade (esta última parte, evidentemente) – aliás, ao meio natural de todos nós, animais.
Contudo, poucos sabem, e pouco se sabe ainda, da história que uniu cães e humanos. Sabe-se que é milenar e que começou, com uma boa dose de certeza, como uma parceria de sobrevivência – os homens caçavam e os cães/lobos seguiam-lhes as pegadas e esperavam, pacientemente, pelos restos. Com o tempo, ao que parece, os canídeos foram-se aproximando mais e mais e, talvez por amizade, começaram a olhar os humanos nos olhos como nunca animal nenhum o fez até hoje. Nem os primatas que se dizem nossos antepassados são capazes de tal contacto, de tal proeza, de tal entrega.
A bem dizer, não fomos nós que os domesticámos, foram eles que se domesticaram e nos domesticaram, também, a nós. Esta relação milenar, tão próxima e única entre espécies tão diferentes, ensina-os a eles e ensina-nos a nós.
Dizer que eles são mais felizes na liberdade da rua, expostos a todos os perigos inerentes a tal liberdade, é o mesmo que dizer que os sem-abrigo estão bem, que são felizes, equilibrados, completos.
Em Portugal, o país que gosta de apregoar ter sido o primeiro a acabar com a pena de morte mas que foi o último a extinguir a inquisição, os animais não têm direitos rigorosamente nenhuns. Para os portugueses, felizmente não para todos, os cães são objetos que podemos ignorar, maltratar, abandonar, sem que daí advenha qualquer tipo de punição. E isto é atraso. Não conheço as leis dos países que agora já não são do “terceiro mundo” mas de um mundo “em desenvolvimento”, mas temo bem que sejam iguais às nossas no que a esta matéria diz respeito.
Um cão que ande na rua pode ser envenenado, pode comer, porque come geralmente, todo o tipo de porcarias que o adoecem, pode ser atropelado, roubado, pontapeado. Um cão que viva na rua está sujeito a passar fome, a ser devorado por parasitas dos quais não sabe, nem pode, defender-se. Um cão que ande na rua adoece mais do que os outros e morre mais depressa, tal e qual como nós.
Para aqueles que querem um amigo, um guarda, um companheiro, fiquem a saber que um bom guarda é dentro de casa que está. Num quintal qualquer ladrão o seduz com alimentos envenenados e lá se vai a guarda. Se querem um cão de guarda, estimem-no, acolham-no, aceitem-no como amigo porque não é todos os dias que alguém nos olha como nos olha um cão que nos escolheu para amar.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Esqueletos no armário

A vida é estranha para quem vive intensamente, para quem nela põe o corpo e a alma sem se aperceber que ela pode consumir ambos.
 
Não há muito resolvi reavivar memórias. Não com o objetivo singelo de as reviver mas com aquele, mais ambicioso, de com elas me poder mudar, poder deixar de ser exatamente aquilo que tenho sido e avançar um pouco mais no sentido de ser aquilo que gostaria de vir a ser.
 
Não é um exercício fácil. Não é. Coisas que acreditávamos mortas e enterradas revivem em nós e, à medida que se avança, aproximam-se cada vez mais. A tal ponto que até parece ter sido ontem. Até sermos capazes de algo impensável – voltar a sentir o que se sentiu naquele exato momento.
 
E é precisamente aí que constatamos que afinal não enterrámos coisíssima nenhuma. Limitámo-nos a cobri-la com outra e mais outra e outra ainda, até sermos capazes de fingir que desapareceu, a miserável.
 
Mas um dia, sem darmos por isso, salta-nos um tique, um gesto estranho, uma e outra e outra noite mal dormida, repleta de sonhos perturbadores, insónias; ou simplesmente falta-nos o ar, mesmo que ele abunde à nossa volta; ou deixamo-nos entristecer; ou fugimos de quem amamos acreditando detestar. Um dia, algo se revela. E é esse o dia que importa; esse é o dia que não podemos deixar escapar. Porque, se o fizermos, nunca mais seremos os mesmos, não por termos dominado a vida mas por termos deixado que ela nos dominasse a nós.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Os medos vêm da falta de fé. Ninguém me tira isso da cabeça. É claro que se quisermos fazer uma análise pormenorizada a cada um deles descobrir-lhes-emos sustentações antigas, infiltradas à laia de raiz cujos pelos radiculares mergulham mais e mais no negro da terra em busca de alimento. Mas não deixa de ser falta de fé. Quem acredita - seja num Deus protetor, em si mesmo, no Universo ou simplesmente na vida -, quem sente a energia que constitui tudo e todos, sabe que o medo não tem razão de existir. Sabe que o medo é, na verdade, o pior dos inimigos e o único a ser temido.
 
Quem tem fé não tem medo. E é por isso que não posso deixar de me surpreender com devotos dominados por ele. Medo da morte; da doença; da pobreza; da solidão… eu que sou crente sem pertencer a lado nenhum, religiosa sem religião, sempre que sinto medo evoco medos maiores e sossego, porque sei que a vista é curta e nada do que se vê, vive ou sente acaba aqui.
 
E já estive mais longe, muito mais longe de acreditar no poder do querer. O que falta, e isso sim falta, é o querer. Aquele querer com garra. O querer mesmo. O que nos leva para a frente e não nos deixa desistir. Esse é que me parece que, com os anos, se vai esmorecendo. Deve ser o cansaço.
 

domingo, 19 de maio de 2013

Da famíla (parte II)

Pode até parecer estranho. Principalmente aos corações mais radicalizados na tradição. Um funeral é uma despedida e uma despedida não é uma coisa alegre, exceto, talvez, quando o prazer de ver toda a família reunida suplanta a tristeza de deixarmos de ver quem partiu.
É certo também que as partidas dos mais velhos custam menos, custam-me menos, do que as dos mais novos. No seguimento do texto anterior, chorei muito a perda da primeira das irmãs. Porque era a mais nova e porque deveria ter tido mais vida pela frente; deveria ter conhecido as netas lindas que veio a ter. Deveria ter estado mais tempo entre nós.
As outras irmãs, aquela de quem nos despedimos há seis anos e esta de quem nos despedimos hoje, deixam saudades mas a sua viagem faz sentido. Foram no tempo delas. Conheceram netos e bisnetos. Foram felizes, tanto quanto o souberam ser. E as suas memórias repousarão em nós até que a morte, que as levou, nos leve também a nós. Assim é a vida. Uns nascem, outros morrem e hoje eu conheci o membro mais novo da família, uma Madalena de seis meses linda linda!
Rodeada de todos os que amo, fui feliz. E se o céu existe, ou aquilo que lhe quiserem chamar, a minha tia também o foi porque não há, não pode haver, maior felicidade do que aquela de estarmos rodeados dos nossos, e ela hoje esteve.

Da família

Já tive três tias e um tio-avô.
O tio-avô conheci-o já tarde. Já eu era mãe e só não me tinha cansado de o ser porque a gente nunca se cansa de uma coisa dessas. Irmão de uma avó que nunca conheci, o que aguçou ainda mais a vontade de o encontrar e de saber dela, procurei-o incitada pelo meu avô que me dizia igual à falecida. Provavelmente por isso é que me olhava de lado sem nunca me ver realmente, por medo de a reencontrar e de voltar a apaixonar-se. As pessoas têm destas coisas, destes medos, enfim.
Mas o homem pareceu ter estado só à espera disso mesmo – de ser encontrado. Após duas visitas, e longas horas de aventuras em que a minha precocemente falecida avó nem participou, foi-se, tão rápida e misteriosamente como tinha vindo, foi-se – desta vez para um lugar onde dificilmente o poderei vir a re-encontrar, até porque se diz que só re-encontraremos quem quisermos mesmo e ele não teve tempo de me marcar para esse querer. Prefiro, como sempre preferi e procurei, encontrar a meia-irmã de quem ele não chegou a contar nada – a avó que nunca conheci.
Quanto às minhas tias, essas envolveram-me sempre nos seus braços à medida que fui crescendo. Agraciaram os meus filhos. Riram-se e choraram comigo. Deram-me cinco primos e muitos conselhos.
Essas, as três queridas irmãs da minha mãe, são a minha família, os meus genes, as minhas origens. Um bocadinho delas habita em mim e a última despediu-se ontem da vida, deixando a minha mãe carregar o peso de todas as lembranças chegadas já aos bisnetos.
Ontem, sentada em frente ao caixão onde descansa, relembrei os bons momentos, que são aqueles que devemos relembrar quando alguém parte, sorri um pouco nessas lembranças com pena que ela não tenha chegado a conhecer a sobrinha bisneta que está para vir, mas pensei que ainda assim conheceu bisnetos, os dela. A mesma sorte não tiveram as duas irmãs que a antecederam na partida.

Hoje, vamo-nos despedir por tempos longos, é o que se espera. E vai ser duro como são todas as despedidas que se sabem prolongadas ou se temem definitivas.

Que descanse em paz.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Devagarinho vamo-nos desapegando

Não digo que a vida seja uma sucessão de perdas. Não é. Também faz questão de nos presentear, aqui e ali, com alguns ganhos, ainda que nunca antes de nos lançar os desafios da ordem, sempre muito bem representados por barreiras, vulgo obstáculos, uns mais altos do que outros mas todos assustadores à primeira vista. Alguns, aliás, com um aspeto intransponível.
Já houve alturas em que acreditei que esses são os melhores. Os mais desafiantes. Os únicos capazes de nos mostrar o quanto valemos, aquilo de que somos capazes.
Agora, limito-me a baixar os braços para melhor me deliciar com o meu cansaço.
Já não preciso de desafios.
Agora, o meu maior desafio está na rapidez com que sinto a desnecessidade de me sentir desafiada.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Moo, o cão pelo qual me apaixonei

Tenho andado ocupada a salvar cães.
 
Foi uma semana carregada de emoção. Mas não é verdade que tenha andado ocupada a salvar cães. Na verdade foi um cão. Um único cão. O cão pelo qual me apaixonei.
 
A primeira vez que o vi, andava a passear a Puca que está cada vez mais confiante e afoita, que se acha invencível e que se atira a tudo quanto é canídeo na certeza de que será ela a dominar, e quanto mais depressa eles souberem isso, melhor.
 
O outro, altivo, estava pespegado a meio do caminho, a olhar-nos.
 
A minha primeira reação foi pegar na Puca ao colo. As pernas fraquejaram-me e pensei – já foste! A parva da cadela levou a mal o colo, lutou e saltou para o chão direta ao bicho que nem se moveu. Grande, de cabeça triangular, com uma mancha negra a tapar-lhe um dos olhos em contraste com o branco do pelo, nem se mexeu. Deixou a cadela refilar, cheirou-a, acalmou-a com o não sei quê que ele tem e que acalma quem tem a ousadia de se aproximar, e seguiu caminho, atrás de nós, como que a dizer, vocês são os tais.
 
Desde então não mais nos deixou a porta. Durante o dia andava por aí, no meio das ervas, a saltar muros, mas à noite aninhava-se ao portão, ou debaixo dos carros, e esperava. Esperava por água, por alimento, por uma manifestação de carinho.
 
Ao fim de algumas semanas não parecia o mesmo. As carraças tinham tomado conta dele. Chupavam-lhe tanto sangue que o animal deixou de ter forças para saltar e ia-se deixando ficar, estendido, na sombra dos automóveis.
 
O meu irmão, que lhe viu a foto e que há muito queria um cão, acreditou ter encontrado o animal perfeito.
 
A semana passou-se entre desinfestações, banhos, veterinária, busca de empresas de transportes de animais…mas passou-se, sobretudo, nesta azáfama interior que começa pelo combate ao medo e acaba num amor quase incondicional. Passou-se sobretudo num crescente apego e no imediato, e necessário, desapego para que o possa enviar para a Holanda sem ficar de coração partido. Passou-se, e continua a passar-se, na certeza de que quem ama escolhe o melhor para o objeto amado e não a satisfação dos seus próprios interesses. E tudo isto é bonito, mas o coração, que é quem sente, não deixa de doer.
 
No final de Junho, o Moo – tal é o nome que lhe foi destinado -, viajará de avião para Amesterdão. Entretanto, passará um mês e meio numa espécie de vigília, junto da veterinária que tratará de tudo o que é preciso tratar para que um animal de companhia possa viajar além-fronteiras.
Todos os dias, eu penso no Moo. Como estará? Sei que já foi operado e tudo correu bem. Estará feliz? Sentirá a minha falta?
 
 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Dia da Mãe

A minha filha queixou-se ontem que eu não lhe ligo nenhuma. Que deve ter sido a única filha que não almoçou com a mãe no dia que, afinal, é dela – da Mãe. Apareceu-me em casa com um vaso a transbordar de alfazema. As flores roxas a adornarem-lhe o rosto cada vez mais bonito. A gravidez a brilhar-lhe nos olhos. Ia para a piscina, aproveitar o sol da manhã.
 
Queria que tivéssemos estado juntos, os três – eu e os meus filhos -, mais ninguém. Mas eu trabalho ao domingo. E ontem foi domingo. E da forma como as coisas estão não se podem saltar dias de trabalho. E, se formos a ver bem, dia da Mãe é todos os dias e esta semana, está combinado, havemos de jantar os três, só os três, sem mais ninguém. E esse será o nosso dia da Mãe.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Do Novo Estado Velho

Era suposto ter espírito para falar de coisas giras que contrariassem o estado das coisas que andam feias.
 
Era suposto ter espírito para animar a malta, já que os ânimos andam todos por baixo. Ou quase todos.
 
Era suposto. Mas não tenho.
 
Ontem foi feriado. Foi o dia do trabalhador e eu trabalhei. Trabalhei porque foi preciso.  E isso parece-me absolutamente normal – fazer o que é preciso para que as coisas corram o melhor possível. Mas eu trabalho para mim. Não devo explicações a patrão nenhum. E isso tem os seus custos, como tudo na vida - nunca sei o que vai acontecer, quanto vou ganhar, se vou ganhar. Vivo, como se costuma dizer, com o coração nas mãos, mas foi uma escolha minha, não responsabilizo a sociedade por isso. Responsabilizo-a sim por não dar a toda a gente a oportunidade de ser produtivo e de se poder sustentar, porque nem toda a gente tomou o meu rumo, a maioria das pessoas trabalha para terceiros, tem um emprego, ou tinha, e não sabe, não pode saber, o que fazer sem ele. Para além de que sem empregos não há quem possa pagar os meus serviços. Perdemos todos. Nós, os pequeninos. A maioria.
 
Quando, ao fim do dia, cheguei a casa e liguei o televisor mergulhei num mundo em reboliço, cheio de gente zangada ou simplesmente muito insatisfeita. Não, não é só aqui em Portugal, a corrente espalhou-se por todo o lado. Cheira a guerra, o que me leva a pensar que mais uma vez não seremos capazes de encontrar outra saída que não seja essa.
 
Pode até ser que me engane. Deus queira que sim. Mas alguma coisa há de acontecer. E quão maravilhoso seria se acontecesse algo verdadeiramente diferente. É que os déjà-vu não param de nascer!
 
Os que estão desempregados, ou perderam a esperança e baixaram os braços, ou pegaram nas trouxas e ala gente que se faz tarde. Os que trabalham levantam os olhos e os braços ao céu, eternamente gratos por esta nova forma de escravatura a que são sujeitos porque trabalham o dobro, às vezes o triplo, para compensar os que foram despedidos.
 
Épocas como esta, de crise, oferecem excelentes razões para se reduzirem as despesas e, ao mesmo tempo, pressionar o pessoal a dar tudo por tudo para subir as receitas. As bocas, essas, pode até ser que se abram em gritos pelas ruas em dias como o de ontem, mas calam-se nos locais de trabalho, não vá a sorte fugir-lhes e terem de fazer como tantas – estender a mão à caridade ou zarpar daqui para fora.
 
O Papa Francisco, esse grande querido, disse coisas tão bonitas no seu discurso do 1.º de Maio! Disse que o trabalho enobrece, que é um direito, não uma bênção, que deve servir o Homem e não o contrário. Tudo verdades. E sabe bem ouvi-las da boca de quem tem tanto poder. Que bom seria se esse poder se transformasse em algo mais efetivo do que palavras! É que a essas, leva-as o vento, e cada vez mais depressa as leva porque cada vez mais magras e leves elas são.
 
Estado Novo não se poderá chamar a este estado de coisas. Até porque, como já disse, e infelizmente, não está confinado a este pequeno jardim à beira mar plantado. Mas Estado Velho. Estado Velho, talvez seja um nome que não nos fique mal, a Ocidente ou a Oriente, a Norte, ou a Sul.