domingo, 26 de novembro de 2017

Nós, os Independentes, os Explorados, os dos Recibos Verdes


Fiquei desempregada há 24 anos.

Poderia ter-me deixado ficar. Agarrada a um qualquer subsídio. Inscrita no Centro de Emprego à espera que, do céu, me caísse qualquer coisa.

Poderia ter baixado os braços. Desistido ou, simplesmente, acomodado.

De facto, durante um período de tempo que não recordo qual, usufrui, pela primeira e única vez no decurso da minha vida ativa que começou há 41 anos, do subsídio de desemprego e dediquei o meu tempo a enviar, por carta – na altura ainda o email era uma miragem –, currículos atrás de currículos na esperança de uma resposta. De uma nova oportunidade. Mas, já nessa época, ou particularmente nela, a coisa não corria de feição. Aliás, nem sei já o porquê da extrema dificuldade que acabou por se transformar em impossibilidade de arranjar emprego nesses anos de 1990. Seria a minha formação? Incompleta para uns e excessiva para outros?  Seria a própria conjuntura do país? Teria de voltar atrás na História e, francamente, não estou para isso.

Adiante.

 Emprego nada.

O subsídio acabou e eu decidi voltar a estudar e, em simultâneo, ajudar os mais novos nas matérias que por mim já tinham passado.
No decorrer dos anos acabei por fazer disso a minha profissão e, com a formação adequada, transformei-me numa profissional.

Se arranjei emprego?

Não.

Mais uma vez poderia ter baixado os braços. Ter-me inscrito no Centro de Desemprego e ter requerido um (ou dois, quem sabe…) qualquer subsídio que me permitisse ir vivendo, sem grandes benefícios mas também sem grandes chatices ou contributos.

Não fui por aí.

Lutei, e continuo a lutar, por trabalho. Sou aquilo a que agora se chama, uma empreendedora que trabalha que nem uma condenada merecendo o título de Trabalhadora Independente.

Independente de quê?! De quem?!

Essa é a questão.

Graças a Deus não me falta trabalho e eu, em havendo um buraquinho para preencher, não o recuso.

Trabalho uma média de 48 horas por semana, de trabalho efetivo, e faço cerca de 700 Km, por semana também, uma vez que os meus clientes se encontram espalhados por várias empresas e moradas, o que representa mais de 10 horas de condução.

Como trabalhadora independente, não vejo descontadas no meu IRS nenhuma das despesas que faço para poder trabalhar. Nem gasóleo, nem prestação de carro, nem seguro de acidentes de trabalho – que sou obrigada a ter -, nem comunicações, nem refeições. Nada.

No entanto, sou taxada como se fosse uma empresa!

29,6%, do meu rendimento, vai para a Segurança Social.

25% para as Finanças.

Portanto, mais de metade do meu esforço diário é para pagar impostos diretos. Sim, porque depois ainda temos 23% de IVA em tudo aquilo que compramos! Ou quase tudo.

Não tenho subsídio de férias ou de Natal e ainda nem sequer percebi se tenho direito a baixa médica!

Anteontem desloquei-me ao Centro de Saúde porque preciso de um médico.

Ah! Pois… Marcações só para Janeiro!

Mas se é agora que estou doente!

O que é que faço? Abro os cordões à bolsa e pago a um privado?!

Não sou de protestar, tal como não sou de baixar os braços ou de me encostar. Mas há coisas que revoltam!

Eu ando a trabalhar para quem?! É que para mim não me parece que seja!

Onde andam os outros Trabalhadores Independentes?

Será que sentem o mesmo que eu?

Quem é que nos defende?

Que direitos temos nós, afinal?

À greve não, com certeza, uma vez que só ganhamos quando trabalhamos.

A quê então?!


sábado, 24 de junho de 2017

Debaixo dos lençóis



Foi a minha mãe que me ensinou a fazer a cama: resguardo impermeável, com elásticos que o prendem ao colchão; resguardo de turco, com elásticos aos cantos; lençol de baixo, lençol de cima, de preferência iguais; mais ou menos cobertores, conforme a estação do ano, e colcha.

Quer o lençol de cima quer os cobertores deveriam ficar bem entalados no colchão, para não fugirem durante a noite. Quanto ao lençol de baixo, esse deveria ser irrepreensivelmente esticado, mesmo que isso implicasse duas ou três idas a cada um dos lados da cama. O colchão deveria ser levantado, aos pés e à cabeceira, de forma a prender o máximo de lençol possível. E deveria ser baixado lentamente para que se soltasse apenas o necessário para ficar deitado.

“Quem boa cama fizer, nela se há de deitar”, uma verdade indiscutível sempre que a nossa cama é por nós feita. Mas o que é isso de “boa cama”? Uma cama de lençóis esticados ao limite e que nos prendem os pés se nos quisermos deitar de barriga para cima?

Nunca tal questionei! Bem-mandada, fazia a minha cama tal qual me haviam ensinado e continuava a debater-me todas as noites com a prisão em que ela me deixava, sem saber para onde virar os pés – para fora? para dentro? Quando pensava nos joelhos, decidia que o melhor mesmo seria virá-los para fora, pelo menos contrariava a tendência dos “pés p’ra dentro”. Mas uma coisa é certa – nunca acordei com eles de fora. Tortos sim, mas cobertos. E presos.

Depois vieram os edredões. Toda a gente tinha um. Coisas práticas que, pelo menos durante o Inverno, dispensavam o batalhão de cobertores que acumulávamos em cima – alguns tão pesados que o virar na cama se transformava num exercício de estilo e mestria. Claro que continuei a entalar os lençóis e, desta feita, os edredões. Tudo bem apertadinho por baixo do colchão não fossem fugir e dar liberdade aos pés. Sabe-se lá para onde nos podem levar uns pés em liberdade!

A coisa aliviou um pouco porque o peso de um edredão não se compara àquele de dois cobertores, de papa por exemplo. Mas os pés continuavam lá, presos, sem saberem, coitados, para que lado se haviam de virar.

Até ao dia em que dormi em casa de uma amiga brasileira. Os brasileiros são práticos e, diria eu, descomplicados. O edredão foi colocado em cima da cama sem pruridos com a clara mensagem de que eu era livre de lhe fazer o que bem entendesse e dormir como bem me apetecesse. A minha primeira reação foi entalá-lo aos pés da cama. Mas olhei para a cama do lado e gostei de ver aquela liberdade esvoaçante do edredão, cobrindo-a, simplesmente, sem colcha, sem trabalho, sem prisões.

Foi nessa altura que me atrevi a deixar cair por terra as teorias da minha mãe. Estendi o edredão como quem estende um lençol branco no ar e deixei-o cair sobre a cama. Assim, sem mais nada. Tão simples que a vida é, afinal!

Sim, é verdade que acordei a meio da noite com um pé de fora. Mas não era natural que, depois de tantos anos presos, eles ansiassem por gozar da sua liberdade? Não faz sentido o entusiasmo por tudo o que é novo? Principalmente quando é libertador?

Com o tempo eles habituaram-se à leveza das noites, e dos dias, e agora só espreitam quando lhes apetece. Já não obedecem a ninguém a não ser a si mesmos e eu aprendi a inventar as minhas próprias teorias.


Nunca mais entalei lençóis. Nunca mais entalei edredões ou colchas. Nunca mais entalei ideias, crenças ou vontades – a minha liberdade é total! E de tal forma que se estendeu, ao longo dos anos, para as horas do dia em que os meus pés, finalmente livres, decidem para onde e quando querem ir! Ontem, por exemplo, levaram-me até à praia. Amanhã, quem sabe?! O céu é o limite!

domingo, 29 de janeiro de 2017

Uma questão de Fé


Ele há coisas que todos vimos e há coisas que ninguém vê.

Nada disto é novo e todos estamos plenamente conscientes do facto.

No entanto, raramente estamos de acordo – quer em relação ao que vemos, quer em relação àquilo que não somos capazes de ver.

Isto porque o nosso cérebro interpreta o que os olhos lhe enviam e fá-lo à luz da cultura, do conhecimento, da experiência, qui ça das capacidades de cada um.

No entanto, essa é a realidade pela qual cada um de nós está disposto a morrer (e, muitas vezes, a matar) – aquilo que os nossos olhos veem! Quem é que nunca ouviu a expressão: “Eu vi! Vi com estes olhos que a terra há de comer! E, se eu vi, está visto e ninguém tem o direito de duvidar. E se tu, por um qualquer acaso, viste algo de diferente, então viste mal. Estás enganado”.

É ou não, esta, a atitude generalizada por nós, humanos?

Imagine-se, agora, o que não será em relação àquilo que ninguém vê! É um desentendimento tão grande, mas tão grande, que tem estado, ao longo de séculos, na origem de muitas guerras – ainda que haja quem afirme que essa é a origem da treta porque tudo se resume a interesses bem visíveis. Permitam-me discordar. Pode até ser, e creio bem que é, essa a intenção de quem as provoca – sim, há sempre alguém que provoca as guerras e não é uma mão cheia de gente -, mas aqueles que as alimentam, às guerras, aqueles que realmente as combatem, que se deixam convencer da sua justiça e necessidade, fazem-no para defender aquilo que ninguém vê. Fazem-no em nome da Fé, da Liberdade, da Justiça e de outros valores não palpáveis e relativos às culturas e crenças de cada um.

Relativamente ao que se vê, não vale a pena discutir porque já se percebeu o quão difícil é levar as pessoas a compreender que as interpretações daquilo que os olhos veem se alteram consoante a quantidade e qualidade das variáveis implicadas no processo – tais como a cultura, o conhecimento, e coisas assim…sem importância…(apetece-me ser irónica).

No entanto, relativamente àquilo que não se vê, gostaria de deixar aqui uma ressalva que, valendo pouco por ser minha, é aquela em que acredito: Tanto valor existencial tem a existência como a não-existência de tudo o que não se vê.

Na verdade, a existência de Deus, do espírito, da alma, e por aí fora, bem como a sua não-existência, dependem exclusivamente da Fé. Ter Fé em Deus é acreditar na sua existência e é, portanto, ter Fé na sua existência. Não ter Fé em Deus é não acreditar na sua existência e é, portanto, ter Fé na sua não-existência.

Tudo é, portanto, uma questão de Fé.

E, convenhamos, que tão arreigados são alguns defensores do SIM, como do NÃO. 

Ainda que nenhum deles consiga provar ao outro a sua razão na medida em que ainda não somos totalmente capazes de transformar o invisível em visível. Ainda…

Há contudo, algo que me tranquiliza ao mesmo tempo que me perturba. É que aqueles que SABEM que Deus existe, já o SENTIRAM, de uma forma ou de outra. Já o ENCONTRARAM dentro de si e nos outros. Já COMUNICARAM com Ele. Enquanto aqueles que SABEM que Ele não existe, nunca tiveram contacto com nada que lhes tivesse comunicado isso mesmo. Simplesmente, nunca tiveram contacto com Ele – ou pensam que não tiveram -, e limitam-se a NÃO ACREDITAR. E isto faz uma grande diferença. E faz uma grande diferença porque Ele está dentro de todos e de cada um de nós e só não o SENTE, e só não o ESCUTA, e só não o VÊ quem anda distraído com o imediato, quem anda distraído com o supérfluo, com o temporário. Ou quem faz disso um verdadeiro cavalo de batalha porque acredita que tudo o que é verdade terá de ser reconhecido pela razão.

Nada disto seria problemático se não fosse fonte de tantas discórdias e, sobretudo, de tanta ânsia de aproveitar ao máximo tudo o que há porque um dia acaba e mais vale aproveitar enquanto por cá se anda.

Nada disto seria problemático se não exaltasse o egoísmo e não virasse de pernas para o ar todos os valores que são verdadeiramente HUMANOS – aqueles que nos distanciam dos animais que trazem à flor da pele a necessidade de satisfazer os seus instintos, como o de sobrevivência, e os seus chamados sensoriais.

A diferença. A grande diferença. Entre aqueles que SABEM que Deus existe e aqueles que SABEM que Ele não existe é o comportamento de uns e de outros.

Quem SABE que Deus existe já sentiu o Seu AMOR e SABE que não há nada mais poderoso no Universo que essa LUZ, essa ENVOLVÊNCIA, essa VERDADE que é o AMOR de Deus.

Quem SABE que Deus não existe, NÃO SABE nada disto, porque nunca se deu a si próprio a oportunidade de se auscultar no mais profundo do seu ser, de viajar até ao interior da sua alma para falar com Ele.

E não, não estou a falar de religiões. Estou a falar da existência de Deus.

Infelizmente há, no interior das várias instituições religiosas, os que SABEM que Ele existe e aqueles que FINGEM SABER. Por isso é que as coisas são como são.

Não vale a pena entrar para uma instituição religiosa à procura de Deus. Ele não está lá. Ele está dentro de cada um de nós.

Só depois de o encontrarmos aí, é que vale a pena ingressar numa instituição – aquela para onde Ele nos chamar. Porque Ele chama, não tenham dúvidas. Ele chama quem o ENCONTRA. Quem o ENCONTRA dentro de si. Porque não vale a pena procurá-Lo com a razão – nunca O encontrarão. Ele está muito para além disso – Ele está nos númenos de Kant. Está na nossa alma. Está na nossa fé porque, afinal, é tudo uma questão de Fé. Tudo. Por mais contas que se façam, é tudo uma questão de Fé.

E porque haveriam vocês, os não crentes, de andar à procura de algo que SABEM que não existe?

Bom, quando mais não seja para poderem provar isso mesmo.

Quem tem certezas não tem medo de nada e, portanto, entrega-se à vida de alma e coração.

Ser capaz de “olhar para dentro” de nós mesmos; de refletir sobre a nossa vida; de questionar o que nos aconteceu e a forma como lidámos com o que nos aconteceu. Ser capaz de “desviar” os olhos do que é palpável e tentar ver para além disso, como quem vê para além da ténue neblina que se forma ao longo do alcatrão num dia quente de Verão ou o que está para lá da luz do sol refletida pela neve. Tudo isso faz parte de uma entrega total à vida.

O tempo gasto freneticamente com “coisas” é uma fuga à própria vida.

Quem se recusa a refletir. Quem não é capaz de se isolar por algumas horas para ouvir a voz que lhe vem de dentro foge freneticamente da vida.

Quem é capaz de fazer isso. Quem faz dessa reflexão uma prática constante. Mais cedo ou mais tarde, encontrará Deus.