domingo, 30 de junho de 2013

A génese dos grupos, partidos, clubes, associações e afins

O homem destaca-se da multidão. Sente-se injustiçado com certas decisões tomadas pela maioria e, em tom que se assemelha à queixa, desabafa com outros que se mantiveram igualmente afastados, uns por se sentirem como ele, outros porque o que sentem é o desinteresse que mora em quem não tem sentido de pertença e se julga, por isso mesmo, único no mundo.

Rapidamente encontra concordantes que, agora unidos, se sentem mais fortes e cuja razão cresce à medida que o número de adeptros cresce também. Contra a manipulação das massas! Gritam eles em resposta à palavra de ordem do primeiro homem que naturalmente se auto-elegeu líder daquele grupo.

Já não estão sozinhos. O seu ânimo alegra-se. Sentem, cada vez mais, que podem fazer a diferença, que a razão está do seu lado e esquecem, quase de imediato, a primeiríssima causa que os levou a juntarem-se para, na sequência lógica do processo, elaborarem todos os documentos que alterarão a vida de todos, inclusive da maioria de quem, inicialmente, se destacaram, para melhor. E isso, nem se questiona, é para melhor. Eles é que sabem. Eles sentem o que é não pertencer a lado nenhum. Eles já foram daqueles que não se deixaram manipular.

E, na ânsia de mostrar ao mundo a solução mágica para todos os problemas, vão gritando as suas razões, arrastando o maior número possível de adeptos, desprezando qualquer um que não partilhe das suas ideias .

O seu desejo é, agora, o de serem, eles próprios, uma maioria.

 

sábado, 29 de junho de 2013

Curiosidades

A Quinta da Fonte Santa, em Caneças, outrora pertença de um dos irmãos Quina, o Miguel, casado, à época, com uma filha dos Condes da Covilhã, continua a ser um lugar privilegiado, apesar de ter mudado de mãos pelo menos duas vezes após o 25 de Abril de 1974.
Os seus antigos proprietários davam, por lá, festas mais poulares do que deslumbrantes. Era gente dos toiros, do fado e dos cavalos e o Quina gostava de reunir tanta gente quanta por lá coubesse, para comer e beber. Foi lá que aprendi a andar a cavalo e foi lá, também, que recolhi importantes referências que têm pesado nas escolhas que tenho feito ao longo da vida.
Na sequência da Revolução dos Cravos a quinta foi ocupada e permaneceu, durante um tempo que não sei determinar, nas mãos da população da zona que dela fez escola de equitação para o povo, acabando por dar prejuízo, coisa que eu prefiro não comentar.
Mais tarde, não faço ideia de que forma, foi entregue, como pagamento de dívidas – de quem, não sei -, ao Banco de Portugal e é nesse pé que agora está – transformada numa colónia de férias para familiares e amigos de todos os que trabalham na instituição.
Ao fim de todos estes anos voltei lá e levei comigo a Puca, que desde ontem se encontra nua de cabelo, não sei se humilhada, mas estranha, sem dúvida alguma, porque eu, inexperiente nestas coisas de cabeleleireiros, a tosquiei à máquina zero.
Voltei lá dizia eu, e levei-a comigo. O bosque continua deslumbrante, a quinta com a mesma dimensão que eu conheci. Os edifícios relativos à colónia de férias são bonitos como, aliás, todas as infraestruturas construídas para esse fim. Trata-se de um espaço maravilhoso, cheio de árvores e carreiros que faz as delícias de qualquer amante da natureza e, sem dúvida nenhuma, de qualquer canídeo.
Contudo, para grande espanto meu, não é permitida a entrada a cães no recinto – atenção que não se trata de “um recinto” mas do espaço que acabei de descrever. Porquê? Não faço a mínima ideia, parece que tem qualquer coisa a ver com as doenças. Tu queres ver, pensei eu de mim para comigo, que trazem para aqui crianças com maleitas que ainda me pegam uma traquitana qualquer à cadela?

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Mitos

Tempos houve em que se acreditava que aos bebés se deveria alimento e bom descanso. Tocar só o necessário. E beijar… era coisa a evitar por causa dos germes.
Muitos cresceram assim. Sem grandes demonstrações de afeto. Sem toque. Sem beijos. Sem abracinhos ou carícias.
Esses bebés, os que cresceram assim, tornaram-se adultos desajeitados. Não que não sintam afeto, mas não sabem como o demonstrar e sofrem, muitas vezes, de uma falta qualquer que não identificam. Contudo, conseguiram dar aos filhos um pouco mais do que aquilo que receberam dos progenitores. Ainda assim, muito pouco.
A coisa foi-se repetindo de geração em geração até se atenuar o suficiente para que os danos não se tornassem completamente irreparáveis e, hoje, podemos dizer que existiu uma geração que deu à luz gentinha mais ou menos saudável.
Mais ou menos…
Os adultos que cresceram sem demonstrações de afeto, os primeiros aqui referenciados, ainda existem. Velhinhos, mas existem. Com a idade refinaram as carências e são agora pessoas que nunca foram realmente adultas e que, por isso, se sentem traídas pelo seu próprio corpo. Algumas dessas pessoas até tiveram a sorte de não precisarem assim por aí além de se responsabilizar, nem por si nem por os outros – tiveram quem fizesse isso por eles. Esses são os piores. Vivem como se todos lhes devessem e ninguém lhes pagasse. Só estão felizes quando o mundo se põe, como que por magia, de acordo com a sua vontade e, por isso mesmo – porque o mundo raramente se põe conforme a nossa vontade -, andam quase sempre trombudos, responsabilizando fulano, cicrano e beltrano pelos seus infortúnios que podem ir desde a avaria do televisor ao sol que entra pela janela.
A todos aqueles que estão agora em idade, e predispostos, a serem pais e mães, por favor não se esqueçam de abraçar muito as vossas crianças. Beijem-nas até ao sufoco. Encham-nas de mimos. Não acreditem em mitos, sejam eles urbanos ou rurais não deixam de ser mitos e, como tal, capazes de fabricar mais um batalhão de vencidos. E isso é coisa que não nos faz falta nenhuma.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

1979

Lembro-me perfeitamente. Amesterdão debatia-se sob o gelo de um Inverno pesado que tardava em acabar.
À sua volta, a maior parte dos lagos, pelo menos os maiores, serviam de pista para os inúmeros adeptos de aeromodelismo e eu, novata naquelas andanças, embrulhava-me num casaco forrado a pelo de carneiro e desaparecia numas botas feitas com a pele de um animal da mesma espécie.
Todas as casas tinham aquecimento, até mesmo o minúsculo apartamento que alugámos à última hora num Aparthotel de uma daquelas ilhas minúsculas separadas da cidade por canais minúsculos atravessados por uma espécie de jangadas suficientemente fortes para levar dois ou três carros e uma dúzia de pessoas. Era um percurso engraçado – ficávamos sempre com a sensação que um dos lados da jangada já estava a atracar quando o outro ainda não tinha começado a navegar.
Estávamos num outro mundo. Não, num outro universo. Estávamos em 1979 e Portugal ainda respirava o mesmo ar que o alimentou ao longo de 48 longos anos. Tínhamos saído da província, fechada, pequenina, mesquinha, e tínhamos mergulhado na vida.
Quando o Inverno finalmente levantou âncora fomo-nos encaixando em bares e restaurantes, todos na mesma ilha. Trabalhávamos cerca de doze horas diárias e tínhamos um descanso semanal. Recebíamos à semana, e o dinheiro era tanto que dava para estoirar no dia de folga e juntar as sobras para trazer para Portugal.
Uma vez por semana íamos a Amesterdão e, por vezes, aventurávamo-nos numa ou noutra noite mais afoita e acompanhada. Afinal de contas ficava a quinze minutos de caminho, nem tanto, e era uma cidade absolutamente fascinante.
Estávamos em 1979 e éramos felizes. Nada nos cansava. Trabalho e diversão confundiam-se e o dinheiro que trouxemos alimentou-nos durante meses.
Nunca mais vivi assim.
 

sábado, 22 de junho de 2013

eu e as sombras

Não se adquire facilmente consciência de si e os afazeres e circunstância da vida desviam-nos, naturalmente, para longe de nós.
Contudo, uma vez isolados do mundo, tornamo-nos visíveis para nós próprios e capazes de o compreender quase como um todo, por mais complexo que esse todo possa ser, e é.
Diz-se que o mundo faz parte de nós e nós dele. Pode até ser que sim. Mas eu não posso deixar de sentir que ele não passa de uma criação nossa e que, na verdade, nós existimos para lá desta materialidade a que chamamos mundo.
De vez em quando, sou capaz desse isolamento, dessa concentração, e, de vez em quando, relembro aquilo que julgo ser.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O cão pelo qual me apaixonei # 2

O cão pelo qual me apaixonei, este aqui, passou de Moo a Tommy. Pois é, os futuros donos pensaram bem, reconheceram o erro de se chamar Moo ao animal e passaram a chamar-lhe Tommy, um nome muito mais digno do bicho.
Pois hoje foi o dia da viagem. Depois de ter sido castrado, vacinado, shipado e desparasitado, após mês e meio de quarentena na quinta da Cristina, fomos levá-lo ao aeroporto e seguiu viagem, rumo a Amesterdão.
Sendo esta a época da muda, os pelos do Tommy tomaram conta dos bancos, dos vidros, do tablier, da manta que levei para proteger os estofos mas que acabou por não proteger nada e ser mais uma coisa para lavar, das nossas roupas, dos nossos cabelos, dos nossos narizes, da nossa paciência e quanto mais stressado, mais pelo o animal largava mas, apesar de tudo, portou-se que nem um gentleman. Esperou, pacientemente, uma hora dentro do carro, para nós podermos almoçar e recebeu as senhoras das instituições e hospedeiras de terra, de cauda a abanar e olhar meigo. A maior dificuldade foi mesmo enfiá-lo dentro da caixa de transporte, voltar a tirá-lo de lá porque a caixa, para passar no raio X tem de ir vazia, e voltar a metê-lo lá dentro.
Depois de três horas nestas andanças, lá seguiu viagem. Ficámos nós por cá com uma lagrimita ao canto do olho mas felizes porque, afinal, não sairá da família e pode até ser que o voltemos a ver se a crise nos deixar voar, mais uma vez, até ao Mar do Norte.
 
 

terça-feira, 18 de junho de 2013

Do ativismo e do seu contrário que não é indiferença, nem preguiça, antes uma forma diferente de estar

Ele é um ativista. Não sei se nato se adquirido, mas um ativista ainda assim. Acredita piamente na forte influência que a sociedade exerce sobre cada um de nós, na impossibilidade de lhe fugir e na urgência de mudar leis e procedimentos de forma a que todos tenhamos, pelo menos, as mesmas oportunidades.
Dito assim tudo isto soa a perfeito. Aliás, dito assim ou dito assado. Não posso deixar de corroborar.
Contudo, não tenho veia de ativista. A minha veia, que é como quem diz, o que me move, está mais no individual do que no coletivo. Eu sou aquela estúpida que se o mundo estiver todo a arder e houver alguém preso no meio dos escombros corre para lá sem pensar duas vezes. Sou os braços e as pernas que agem em caso de emergência mas que não têm vontade que os leve a uma vida de luta. Bastam-me as minhas, as pequeninas, aquelas que tenho mesmo de travar se não quiser ser engolida.
Sou aquela que não acredita em grandes mudanças a não ser a longo prazo, na sequência das pequenas. E como sei, de fonte segura, que os seres humanos nunca atingirão o mesmo estágio de evolução, não acredito na equidade. Haverá sempre quem veja mais adiante e quem só consiga olhar o seu próprio umbigo.
No entanto, e mais uma vez, sei que os ativistas são fundamentais neste mundo de diferenças e que todos nós lucramos com a sua persistência e credulidade. Sei que, se não fossem eles, as lutas seriam ainda mais negras, mais duras, mais cruéis – como, aliás, já foram em tempos. Sei que lhes devemos muito e não posso, por isso mesmo, deixar de me sentir orgulhosa por ter um ao meu lado.
 

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Quo Vadis, ou a hipótese de estarmos, mesmo, todos fodidos

Quo Vadis foi publicado em 1895 e, tendo como trama central uma história de amor, fala-nos da perseguição aos cristãos, levada a cabo pelos romanos. O seu autor, Henryk Sienkievicz, foi um polaco que viveu entre 1846 e 1916.
Li este livro quando era miúda. Mais tarde vi o filme que se repete ano após ano, principalmente na altura da Páscoa, na televisão portuguesa. A leitura do livro deixou-me impressionada, na época. O filme, de tão repetido, fez-me esquecer a expressão que o autor usou para definir a sua obra - Quo Vadis?
Foi esta expressão que me veio à memória esta manhã ao recordar as notícias que ontem li sobre a Grécia. Não se tratou de nenhum destaque. Antes uma daquelas notícias a que chamam breves, que enchem as margens de certas páginas e às quais eu gosto de dar importância porque, ao manter-me afastada dos noticiários – sim, é o que tenho feito -, é lá, nas breves, que encontro por vezes o que importa mas que, porque já passou, deixou de ser principal. Refiro-me ao encerramento da estação pública de televisão, na Grécia, e aos elogios que a troika fez ao presidente grego, semelhantes àqueles que os professores, ou os pais, fazem aos filhos quando eles se portam bem. Foi essa sucessão de breves notícias, que, aparecendo separadas podem criar, a quem anda cego, uma certa ilusão de não ter nada a ver o cú com as calças mas que me deixou, a mim, agoniada e me trouxe, esta manhã, à memória, a expressão com que me apeteceu batizar este desabafo e a subsequente história da perseguição aos cristãos.
Quo Vadis? Nós? Onde vamos? Para onde vamos? O que é isto meu Deus?! Quem são estas criaturas que entram assim pela casa dos outros adentro e mudam os móveis?! E depois, por um breve instante, veio-me à cabeça algo ainda mais elaborado, assim ao jeito da teoria da conspiração – e se isto anda a ser planeado há uma série de anos? E se, no meio de gente séria, honesta, carregada de boas intenções, houve sempre um diabo manipulador que, à laia das artes marciais, tem utilizado a força do adversário para lhe cavar a sepultura? E se estivermos, mesmo, todos fodidos?

domingo, 16 de junho de 2013

Viver no campo

Devagarinho alteram-se as rotinas, relaxam os músculos – do corpo e do cérebro que também é corpo mas é mente e tudo aquilo que nós ainda não conhecemos-, adaptam-se os membros a esta nova vida, mais pacífica, mais campestre, mais feliz.
Devagarinho aumenta a vontade de não fazer nada, ou de não ter nada que fazer – que o descanso está nos apetites. Ceder a eles é descansar. Mas ainda é cedo para isso. Ainda é cedo para o descanso. As férias estão quase aí e o poder fazer-se de escassas horas horas de descanso é já um privilégio.
Bom domingo.
 

sábado, 15 de junho de 2013

Passar por cá sem deixar rasto

Continuo resistente às mudanças. Mesmo que seja para melhor, resisto. Mesmo que sejam pequenas, resisto. Mesmo que sejam insignificantes, resisto. Mudar é difícil e todas as artimanhas servem para que fique nem que seja uma coisinha minúscula que, ilusoriamente, me aconchegue na segurança do passado.
A questão é que segurança? Que passado? Não me recordo de um passado verdadeiramente seguro, sem sobressaltos, a não ser o mais remoto, aquele que antecedeu a minha adolescência. O passado anterior a Fevereiro de 75 e, mesmo assim, até desse tenho sobressaltos, terrores, desproteções.
Então que resistência é esta? Talvez seja a resistência da descrença. A resistência de quem se acomodou ao que existe e receia o que virá. A quantos não acontece isto? Esta incapacidade de avaliar a vida que se leva, este habituar-se ao inabituável, este sentar-se comodamente no incomodável?
A predisposição para a mudança treina-se ao longo da vida. Especialmente se não nasceu connosco. E é indispensável que nos tornemos mestres na aceitação da mudança já que é a única forma de evolução. Engana-se quem acredita que evoluiu só porque por cá andou muitos anos. Se nasceu, viveu e morreu no mesmo lugar, nunca passou da cepa torta. Foi como se não tivesse existido e, acreditem, há gente assim. Gente que por cá passa  sem deixar rasto.

O cão dos Baskervilles cá do sítio

Nem todas as pessoas são boas, ainda que o padre Américo gostasse de acreditar que sim, e não sei se é mito ou não mas os cães, e se calhar os gatos também, não faço ideia, parece que saem aos donos, que é como quem diz – são maus se forem educados para o ser. São maus se forem criados por gente má.
 
Aqui no sítio há um cão que me faz lembrar o cão dos Baskervilles. Grande, possante, feio, aterrador. Mau como as piores cobras, tem fama de atacar à traição e, segundo se conta, já limpou o sebo a mais do que um que, abocanhando, só larga quando sente que o fim da presa chegou.
 
Várias queixas já foram feitas mas o dono está-se nas tintas para elas e, embora seja raro ver-se de dia, de noite deambula pelas ruas e hoje, enquanto passeávamos a Puca, vimo-lo sair disparado desta nossa rua. Passou por nós a correr, qual monstro saído de um dos mais elaborados filmes de terror americanos.
 
Trata-se de um serra da estrela gigante, que perdeu o pelo na metade traseira do corpo o que lhe dá uma aparência leonina – sem desprestígio para quem é do Sporting, até porque o leão do clube, ao pé deste cão, parece um gato manso. Infelizmente, já tive oportunidade de o ver em ação e posso afirmar que o seu olhar é feroz, ao estilo assassino lunático e a queixada terrível, de presas salientes que ele faz questão de arreganhar para que não existam dúvidas quanto às suas intenções.
 
Assim que hoje se nos atravessou o caminho, o meu coração disparou, recolhi a trela da Puca e peguei na maior pedra que encontrei na certeza de que não hesitaria em arremessá-la se ele, mudando de ideias, voltasse para trás.
 
Dá sempre jeito ter um cão assim, ou seja o que for, por perto. É um excelente, por justificado, alvo de ódio e de raiva. Um excelente instrumento. Um enfrenta medos do caraças.
 
Hoje, de pedra na mão, senti-me poderosa e quase desejei que ele voltasse atrás para o matar. É que matava o desgraçado. Eu seja cão se não o matava.
 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Pirilampos e borboletas

Não sei se por coincidência, se por distração ou por fruto das circunstâncias, os pirilampos e as borboletas desapareceram do meu universo.
 
Aos pirilampos, não os via há anos! Cheguei mesmo a esquecer as noites de caça e as caixas de fósforos iluminadas pelos seus rabos.
 
Quanto às borboletas, pensei que tinham perdido a cor. Que agora eram todas grandes, castanhas e nojentas. Como as das traças.
 
Parece que não. Que quer uns quer outros continuam a existir. Provavelmente emigraram e agora, por qualquer razão que a razão desconhece, estão de volta.

Ontem à noite cruzei-me com vários pontos luminosos, de uma luminosidade intermitente. Um deles voou mesmo na minha direção para que não restasse qualquer tipo de dúvidas - eram pirilampos, sim senhores. Pirilampos pescadores de pequenas luzes que furam a noite. Pirilampos capazes de iluminar os caminhos mais escuros e de me fazerem sentir segura, não sei se pela luz se pelas memórias.

E as borboletas?! As borboletas voltaram! Não tão brilhantes como costumavam ser. Não tão vivas. Mas voltaram. Os castanhos a ganhar alguma luz, a ficarem dourados aqui, laranja acolá. Mais coisa menos coisa e voltarei a ver as amarelas e brancas. Hoje consegui ver uma negra e dourada, tão grande que lhe distingui as cores apesar da lonjura.

Ele há coisas que não devemos deixar que voltem, mas há outras... há outras que já nem saudades geravam por habitarem no reino do esquecimento. Como os golfinhos, os pirilampos e as borboletas coloridas.

 

Nós, os loucos

No decorrer dos momentos em que me deixo levar por Proust e pela sua (…)Busca do Tempo Perdido, momentos que, não posso deixar de o dizer, me dão o prazer dos estados de graça, e a propósito da alienação das novas tecnologias e da afirmação comummente atribuída a Einstein de que uma geração que se deixe envolver por elas transformar-se-á numa geração de imbecis, retive uma passagem que descreve a forma de estar de uma certa aristocracia numa colónia balnear em Balbec, na Normandia, aqui.
 
Diz Proust:
 
“Durante aquelas longas tardes, o mar estava à frente deles apenas como uma tela de cor agradável pendurada no boudoir de um rico solteirão, e só no intervalo das jogadas é que um dos jogadores, sem nada melhor para fazer, erguia os olhos para ele para de lá retirar uma indicação acerca do bom tempo ou das horas e recordar aos outros que a merenda estava à espera.”
 
Com tecnologia, ou sem ela, já passaram decerto por este planeta várias gerações de imbecis e, por muito que admire, e admiro, Einstein, e sem garantias nenhumas de que a afirmação lhe pertence, direi que não são as tecnologias, os jogos ou as vulgaridades de certas gentes que se entretêm a observar os outros num misto de inveja e desejo para através deles encontrarem motivo de conversa, que fazem a diferença. Mas antes a forma como cada uma destas coisas é utilizada e por quem.
 
Tudo indica que as belezas dos mares, dos rios ou das montanhas – alguma vez sentiram Deus no cimo de uma montanha? Ou mesmo no seu sopé? Já suspiraram só de olhar o leito de um rio? Já deixaram que o frio da água oceânica tomasse conta do vosso corpo? – nunca foram vistas e muito menos sentidas por todos. Como nos mostrou Pessoa, são privilégios de alguns, muitas vezes dos tidos por loucos.

sábado, 8 de junho de 2013

Algarve

Gambelas, Montenegro
Chegámos às sete da manhã e pensámos – Tanto por onde escolher! Podemos almoçar por aqui.
Agora, às onze e um quarto, tudo continua na mesma – não se vê vivalma, ou quase -, e os restaurantes, que prometiam, afinal estão fechados.
Saí para me certificar do nome do lugar. Deixei a chave na ignição e a porta do carro escancarada. Quando o vi aproximar-se, voltei para trás, tirei a chave e tranquei a porta.
O rapaz, dentro de um automóvel branco, hesitou no estacionamento. Provavelmente pensou que eu ia sair. Quando se apercebeu do meu receio, ficou ofendido – vi-o nos seus olhos.
Ao regressar ao carro percebi que a janela tinha ficado completamente aberta. Menos mal. Não foi longe a paranóia.
Para já, o Algarve parece abandonado.
 












 
Faro estava melhor. O Forum cheio de gente, em contraste com o abandono das ruas. Talvez fosse por estar a chover.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Este é para a minha mais que tudo

Dizem que ser avó é ser mãe duas vezes. Não creio. Ser avó é ser avó. Não é a mesma coisa que ser mãe.
 
Uma mãe está a percorrer, pela primeira vez, um caminho que uma avó já percorreu. O seu coração já se sobressaltou ao mínimo desvio da rotina, ao mínimo sinal de anomalia.
 
Para uma mãe, qualquer alteração pode ser uma anomalia. Uma avó sabe, por experiência própria, que a vida é feita de anomalias.
 
Uma mãe vive com o medo que o coração lhe caia das mãos. Uma avó sabe como o segurar.
 
Uma mãe enche-se de culpa pelas dores dos filhos. Uma avó sabe que as dores não se arrancam e que a culpa só causa mais dor ainda.
 
A uma mãe pesa-lhe a responsabilidade de tudo o que faz. Uma avó sabe que o caminho é feito, também, de disparates que o amor acaba por colmatar.
 
Por isso, minha muito querida filha, sossega. Tudo vai correr muito bem com a tua pequenina.

Eu, adormecida

És bonita, disse ele baixinho para não me acordar e eu, do fundo do meu sono leve, pedi para ele repetir – não percebi, disse eu. E ele repetiu, és bonita, e sorriu, muito bonita.
E com estas palavras me despertou.
Não são palavras que eu me tenha acostumado a ouvir, ainda que na adolescência arrancasse alguns espantos, especialmente de gente mais velha, amigos lá de casa. Depois, quando casei, ouvi-as uma ou outra vez da boca do meu primeiro marido. O segundo não tinha esse hábito e eu cheguei a acreditar que toda a minha suposta beleza se tinha desvanecido nesse casamento que acabou por ser, aliás, o mais duradouro, atribulado e sofrido. Anos vividos em sobressalto.
Talvez a beleza more na tranquilidade e na segurança. Na confiança de a termos ela revela-se.
Talvez a beleza more no sono e talvez por isso seja tão fácil, e tão bom, adormecer.
Mas vivemos num mundo em que o adormecimento pode significar a morte da vida. A inércia. O afastamento. A alienação.
Ontem, ao ouvir esta senhora, compreendi o quanto tenho andado adormecida. Há anos preocupada com a minha sobrevivência e com a dos meus. A habituar-me, gradualmente, a reduzir despesas, mais e mais, convencida que é esse o meu dever – trabalhar mais, gastar cada vez menos. E, de repente, tomo consciência que há anos que não sei o que são férias. Há anos que só em caso de emergência é que compro uma peça de roupa ou de calçado e há anos que não saio, não me divirto, não gasto porque não tenho o que gastar. E é neste estar que me vão adormecendo. A mim, e a todos nós.
 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Os outros como espelho de nós

Saí do local de trabalho e rumei a casa do meu filho. Está doente. Foi preciso ir à farmácia aviar a receita que o médico ao domicílio lhe passou, ontem, já perto da meia-noite.
No caminho para casa, e um pouco fora de horas, ocorreu-me que não tinha nada de jeito para o almoço e que me apetecia salmão.
O relógio digital do automóvel, que anda sempre alguns minutos atrasado, marcava meio-dia e meia. Mesmo assim, decidi que pararia no mercado perto de casa. É um daqueles mercados tradicionais, aos quais a minha mãe, e eu ainda, muitas vezes, chamava praça. Vamos à praça. E a praça era um lugar onde se comprava tudo o que se pudesse comer e onde tudo era bom e fresco. Uma espécie de hipermercado da alimentação onde há senhoras, ou senhores, em cada banca, para nos aviar.
A praça estava a fechar quando irrompi pela porta. Ela, a senhora a quem eu antigamente comprava o peixe e que não via há uma série de anos, estava a arrumar os restos, alternados com camadas de gelo e separados por grandes plásticos, em caixas de esferovite.
Admirou-se quando me viu. Disse que nem queria acreditar! Por onde é que eu tinha andado?!
Não sei ao certo porque me fez essas perguntas dado que não parou para escutar as respostas e, enquanto cortava duas postas de salmão – que tenho agora no forno e com as quais me vou regalar -, contou-me tudo sobre a vida dela. Que tem uma netinha com dois anos e meio e que a netinha diz isto e aquilo e aqueloutro. Que responde quando ela lhe pede qualquer coisa e que a trata por vovó. Aliás, vovó foi uma palavra que ela repetiu inúmeras vezes durante os dez minutos – podiam ter sido cinco – que ali estive, já de saco na mão, com um pé dentro e outro fora, sem querer ser mal-educada mas cheiinha de pressa.
No caminho para cá pus-me a pensar nas inúmeras vezes em que eu fui exatamente assim. Nas inúmeras vezes em que, só depois de me despedir de alguém, me apercebi de que dela nada tinha sabido. Que o tempo tinha sido passado a falar de mim. Que eu tinha, inadvertidamente, monopolizado o quase monólogo.
Provavelmente ainda terei momentos, de mais euforia, em que isso poderá acontecer. Mas, garanto, acontecerá cada vez menos. Quando mais não seja porque a sensação que deixa é terrível. Porque, em verdade, me faz sentir muito mal comigo mesma.
 

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Por onde ando

Tenho andado a ensaiar uma espécie de rotina baseada na excelente desculpa de ter de passear a Puca. Aliás, um cão, quando mais não seja, e é, serve para mantermos uma vida mais saudável, a não ser que não nos importemos com os cocós e os xixis no terraço, na varanda ou no quintal e eu importo-me.
 
Das poucas ruas que existem neste lugar, esta encanta-me.
 
Hoje aventurei-me a descê-la até ao fim. Desci-a e subi-a. Está estabelecida a rotina.
 
Trata-se de um processo que leva cerca de meia hora e que posso fazer, no mínimo, duas vezes por dia. Três ao sábado e a partir de final de Julho.
 
Quando desço




 
Quando subo
 




 
Deixem-me dizer-lhes da maravilhosa luminosidade deste lugar, dos cheiros a flores silvestres e do silêncio do caminho.
 
Deixem-me dizer-lhes que o Tejo só está longe porque a lente o afastou. Aqui, nesta rua, ele está mesmo aos meus pés.
 
Nesta rua, tudo está próximo. Tão próximo que, ao percorrê-la, fazemos parte dela, e nem eu nem a Puca emitimos um som que seja,  para não perturbarmos os espíritos divinos que por cá habitam.
 

terça-feira, 4 de junho de 2013

Confissão

Se me pudesse confessar diria que vivo de coração fechado.

Não que não o dê, mas não o dou demasiado.

Se me pudesse confessar, gritaria a raiva do mundo.

Não que não perdoe. Mas esquecer, não esqueço -  não sou capaz de ir tão fundo.

Se me pudesse confessar, diria que o amor endureceu.

Não que não viva. Mas tudo nele morreu.

Se me pudesse confessar, abriria a minha boca e de lá sairiam coisas extraordinárias,

Tão extraordinárias como as coisas que ninguém espera que saiam da minha boca.

Se me pudesse confessar, o mar revoltar-se-ia levando consigo o Tejo.

Se me pudesse confessar.

Se me pudesse confessar, usaria as unhas para rasgar a carne coberta de todos os males.

Se me pudesse confessar, todos os montes, de todas as serras, chorariam.

Se me pudesse confessar.

Se me pudesse confessar, todos os rios secariam

                                          todos os peixes morreriam

                                          todas as folhas cairiam

Se me pudesse confessar.

E as flores,

                  essas,

                             não mais floririam.

                            

                                          E nem o sol aqueceria.

            

           Se eu me pudesse confessar.

 

Escrever é uma forma de catarse como outra qualquer

Às vezes apetece-me baixar os braços. São momentos em que deixo de acreditar. Momentos que nem sequer existem pela minha falta de fé ou de vontade, antes pelo desgaste. Eu labutar, labuto. E quero continuar a acreditar que daí me hão de advir proventos. Acontece que nem sempre são os proventos esperados. Ainda assim, ando bem com a minha consciência mesmo que isso não constitua um provento. Porque encontrar na tranquilidade da consciência um provento, só por si, é o mesmo que ver o extraordinário no que deveria ser vulgar.
Sempre me foi dito para não contar com os ovos no cú da galinha, a despeito desta minha fé e deste meu otimismo. Talvez eu devesse acreditar mais e recear menos. Os receios, está provado, são cada vez menos bons conselheiros. Alimentar o otimismo mesmo que isso, aos olhos alheios, seja disparatado, pode não trazer proventos mas traz, sem dúvida alguma, uma certa alegria. E já que a vida, longe de ser um todo, é um conjunto de pequenos nadas, mais vale enchê-los, aos pequenos nadas, de alegria.
E pronto, já me ajudaram a correr com o medo. Está feita a catarse. Tenham um dia muito feliz. Mas não esperem por ele – façam-no.

sábado, 1 de junho de 2013

Somos peões, meros peões, nós, os mais pequenos

Há 38 anos que tento esgravatar nas memórias do meu pai, curiosa por saber tão exatamente quanto possível, o que é que realmente aconteceu antes, durante e após a revolução que dez meses depois o deixou assim, enfermo, incapacitado.
Sempre reparei que é um assunto que ele não gosta de abordar mas hoje, sabe-se lá porquê, levantou um pouco do véu que cobre os dias que medeiam Abril de 74 e Fevereiro de 75.
Hoje, vá lá saber-se porquê, lamentou certas decisões, confessou ter tido medo e chegou mesmo a levar à cabeça um dedo, em forma de gatilho, pum pum pum, fez ele, ao jeito de quem merece morrer por ter sido estúpido.
Hoje, tantos anos depois, tudo parece menos sério e muito mais claro a este octogenário que um dia se viu entre a espada e a parede, dividido entre a fidelidade e o companheirismo mas, sobretudo, que se sente arrependido de ter seguido pelo caminho que o levou até essa posição. Mas era muito mais dinheiro, diz ele, muito mais dinheiro…

Nossa Senhora passou por aqui

Ou melhor – uma das suas imagens. No alto de uma carrinha, rodeada de flores e com uma pequena luz a iluminar-lhe as mãos e o rosto.
Não sou uma católica fervorosa. Aliás, nem sei se sou católica. Tenho tantas queixas das igrejas. De todas e da católica em particular. Mas sou religiosa e há certos momentos que valem pela extrema beleza da comunhão e da espiritualidade. Este foi bonito por ser inesperado.
Vim viver para o campo, para uma pequeníssima comunidade constituída por quintas, rendeiros e arrendatários modernos que só cultivam pequenas parcelas de terra para consumo próprio. Muita terra coberta por papoilas, malmequeres e alfazemas que crescem ao deus dará.  À noite tudo sossega e só se ouve um ladrar ou outro, tímido e longínquo.
Duas das três ruas são mal iluminadas mas hoje, quando fui passear a Puca, havia gente à porta da capela. Desde que aqui estou, ainda não a tinha conseguido ver por dentro. Gosto de lugares onde se reza. Transmitem-me tranquilidade e leveza, fazem-me feliz.
“Nossa Senhora vem aí”, disse-me o homem que, de pé, tentava convencer alguém a esperar. “Porquê?”, perguntei eu. “Porque é costume”, respondeu ele. Depois olhou em volta. Estávamos só nós - eu, ele, a Puca e as portas da capela semiabertas a deixarem a luz fugir pelas frinchas. “Se não houver ninguém para a receber, para o ano ela não vem”, disse ele com uma certa tristeza na voz. “Eu vou a casa largar a cadela e já volto", respondi.
E foi assim que depois das onze da noite, com a minha mãe pelo braço, fui rezar um Pai Nosso e algumas, muitas, Avé Marias. Para o ano há de voltar - a escada da capela estava cheia e o padre, vestido a rigor, estava feliz.