À entrada deparamos com uma cabeça de Cristo fotocopiada vezes sem conta. Uma daquelas cabeças de risco ao meio, impecavelmente traçado, e cabelos quase louros, revoltos após um brusching de escova larga. Vá lá que os olhos são castanhos e não azuis…
Ao lado canta-se. É uma igreja evangélica que serve a comunidade cigana. São várias as famílias que vão entrando enquanto eu aguardo a chegada dos legionários. Será a minha primeira ronda pelos meandros de uma Lisboa que vive infiltrada na normalidade. O objetivo é distribuir alimentos. A carrinha, com o nome de Jesus Cristo em destaque, vai parando nos lugares habituais. Aqueles a quem as mãos tremem formam filas e repetem pratos de sopa até deixarem de tremer – saciaram a fome, mataram a fraqueza por mais um dia. Amanhã logo se verá.
Dos legionários, nenhum me parece verdadeiro adepto das palavras que a carrinha ostenta. Pouco importa a que associação se oferece o trabalho, o que interessa é que tenha provisões suficientes e meios para as distribuir. O resto…cada um sabe de si que essas coisas das religiões nada valem perante os atos de quem se dispõe a ajudar.
A maioria dos carenciados é composta por homens de meia-idade. Uma ou outra mulher... um ou outro jovem...
Não tenho documentos, queixa-se um a quem a bebida não faltou a julgar pelo bafo que exala, saí da prisão e não tenho documentos. E porque não lhos deram quando saiu? Porque andei fugido sete anos. Incógnito por esse mundo até ser apanhado. Parece demasiado hollywoodesco mas nunca se sabe…a mim gabou-me os óculos e chamou-me miúda, o que só por si comprova o nível de abstração.
Um catraio, que não tinha mais de seis ou sete anos, estendeu os braços à espera de um saco. Habituada a olhar para cima, não o via se não fosse o adulto por trás dele apontar para baixo. Quando olhei, não fui capaz de esconder a minha surpresa. É para ti? Acenou-me que sim, aceitou o saco e partiu. Fiquei a pensar no gaiato o resto da noite.
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