sábado, 30 de março de 2013

Há estados aos quais ninguém deveria de ter de se habituar

Há quem acredite que são um grupo frágil, daqueles que cairão em caso de catástrofe, humana ou natural. Há quem acredite nisso. Eu não.
Vejo-os praticamente todos os meses e praticamente todos os meses lhes temo a sorte, mas eles lá estão, de pé ou a cambalear, na fila ou amontoados, à espera da sopa.
Vivem na rua, dentro de caixas de cartão, alguns, em cima de uma espécie de colchões, outros, e outros ainda, nem isso têm, só os cobertores que certas pessoas vão arranjando para lhes dar. Enrolam-se neles como chouriços e muitas vezes nem acordam para comer. Deixa-se o que for, exceto sopa, ao lado e reza-se – quem sabe e quer – para que não o roubem.
Ontem, em frente à estação da Stª Apolónia, recusaram-se a fazer fila. Um homem de meia-idade, cambaleante já, gritava que tinha ficado farto de filas na tropa; que as filas lhe faziam lembrar coisas más e que não, não fazia fila. Tinha sido o primeiro a chegar, deem-me uma sopa que me vou já embora. Outros, muitos, seguiram-lhe o exemplo. A coisa complicou-se, tanto mais que um jovem, gingão e provocador, entendeu que aquele era o seu território e só lá estaria quem ele quisesse. Ao murro e ao pontapé expulsava um negro cambaleante  que voltava sempre, mudo, provocador também, arrastando os pés como se um fio o ligasse àquele lugar. Era ver o outro a empurrá-lo para lá da esquina e vê-lo a ele a surgir dela como do nada, teimoso.
Um olhar mais atento encontraria, de pé, orgulhosa, de prato de sopa na mão, a jovem para quem o Ivo – assim é o nome do gingão – caminhava e se pavoneava, enquanto o outro desgraçado ia semeando pelo chão peças de roupa que os empurrões, os socos e os pontapés lhe iam arrancando. Palavra de honra que tive vontade de mostrar a toda a gente, principalmente à estúpida da rapariga, o que de desgraçado, pobre, imbecil, ignorante e mau habita no corpo magro e gingão do jovem pavão, mas não é essa a nossa missão e, por isso, terminámos o que tínhamos ido fazer e deixámo-los, mais uma vez, entregues às suas vidas.
Um dia, se algo de mais grave acontecer, se uma catástrofe se virar contra nós, penso que muita desta gente será aquela que melhor sobreviverá. Catástrofe é coisa do dia-a-dia. E os que ainda não se habituaram a ela, habituar-se-ão, com o tempo.

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