Há quem acredite que são um grupo frágil, daqueles que
cairão em caso de catástrofe, humana ou natural. Há quem acredite nisso. Eu
não.
Vejo-os praticamente todos os meses e praticamente todos os
meses lhes temo a sorte, mas eles lá estão, de pé ou a cambalear, na fila ou
amontoados, à espera da sopa.
Vivem na rua, dentro de caixas de cartão, alguns, em cima de
uma espécie de colchões, outros, e outros ainda, nem isso têm, só os cobertores
que certas pessoas vão arranjando para lhes dar. Enrolam-se neles como
chouriços e muitas vezes nem acordam para comer. Deixa-se o que for, exceto sopa,
ao lado e reza-se – quem sabe e quer – para que não o roubem.
Ontem, em frente à estação da Stª Apolónia, recusaram-se a
fazer fila. Um homem de meia-idade, cambaleante já, gritava que tinha ficado
farto de filas na tropa; que as filas lhe faziam lembrar coisas más e que não,
não fazia fila. Tinha sido o primeiro a chegar, deem-me uma sopa que me vou já
embora. Outros, muitos, seguiram-lhe o exemplo. A coisa complicou-se, tanto
mais que um jovem, gingão e provocador, entendeu que aquele era o seu território
e só lá estaria quem ele quisesse. Ao murro e ao pontapé expulsava um negro
cambaleante que voltava sempre, mudo, provocador também, arrastando os pés como se um fio o
ligasse àquele lugar. Era ver o outro a empurrá-lo para lá da esquina e vê-lo a
ele a surgir dela como do nada, teimoso.
Um olhar mais atento encontraria, de pé,
orgulhosa, de prato de sopa na mão, a jovem para quem o Ivo – assim é o nome do
gingão – caminhava e se pavoneava, enquanto o outro desgraçado ia semeando pelo
chão peças de roupa que os empurrões, os socos e os pontapés lhe iam
arrancando. Palavra de honra que tive vontade de mostrar a toda a gente,
principalmente à estúpida da rapariga, o que de desgraçado, pobre, imbecil,
ignorante e mau habita no corpo magro e gingão do jovem pavão, mas não é essa a
nossa missão e, por isso, terminámos o que tínhamos ido fazer e deixámo-los,
mais uma vez, entregues às suas vidas.
Um dia, se algo de mais grave acontecer, se uma catástrofe
se virar contra nós, penso que muita desta gente será aquela que melhor
sobreviverá. Catástrofe é coisa do dia-a-dia. E os que ainda não se habituaram
a ela, habituar-se-ão, com o tempo.
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