A minha mãe descobriu, aos 81 anos, que é uma mulher de
cidade. Não daquelas cidades demasiado movimentadas e barulhentas, mas de uma cidade
calma, contudo com movimento; onde não haja barulho, mas não falte o comércio;
onde os prédios não sejam nem demasiado altos que tapem o sol, nem demasiado
baixos que deixem passar o vento; onde nunca faça frio e se fizer que poupe os
lugares por onde ela é forçada a transitar.
A minha mãe descobriu, aos 81 anos, que a vida afinal não é exatamente
como ela sonhou, ainda que na verdade nunca o tenha sido apesar de ela ter
conseguido manter a crença de que um dia seria. Agora, parece-me a mim,
desenganou-se.
Uma vez ouvi da boca de um médico uma expressão de espanto,
ternura e admiração perante o enrubescer da face da minha mãe. Dizia ele que
nunca tinha visto alguém com tantos anos, corar! É isso que sinto – uma enorme
ternura. Não deixa de ser admirável que alguém que passou por tanto, que sofreu
tanta desilusão, tenha conseguido preservar a inocência que nos deixa acreditar
que tudo ainda há-de ser como nos sonhos. Os anos que ela poupou ao desalento!
Só espero que recupere a tempo de fazer as pazes com a vida,
embora eu esteja convencida que provavelmente não precisará disso, não a sinto
zangada, apenas desconfortada com o frio - e quem é que não está?! -, é que nos
acontece a todos, mesmo que não nos apercebamos disso a idade ensina-nos muito mas vai-nos tirando a força para aquilo que não chegámos a aprender.
A minha mãe já não tem forças para grandes zangas, nem para
grandes desilusões ou desalentos. Todas as forças que tem, guarda para combater
este frio que não nos deixa e teima em entranhar-se-nos na pele. Todas as
forças que tem, usa para redecorar a casa nova; para a reorganizar; para se
adaptar e aprender a lidar com uma situação com que sonhou mas que afinal talvez
não seja bem como nos sonhos agora, que se tornou realidade. Mas eu sei que
valeu a pena esperar. Sei porque a minha mãe dorme bem, deixou de ter medo e só
se encolhe quando sai para a rua e o vento e o frio lhe despenteiam os cabelos
brancos, tão brancos como a neve que afinal não chegou a cair por cá.
E sei também que sempre que um sonho se transforma em
realidade, apesar de sofrer alterações físicas nessa estranha passagem, continuará
a ser sonho enquanto dele nos ocuparmos.
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