sexta-feira, 15 de março de 2013

Não é só a capacidade de sonhar, é também aquela de ir alimentando os sonhos aconteça o que acontecer

A minha mãe descobriu, aos 81 anos, que é uma mulher de cidade. Não daquelas cidades demasiado movimentadas e barulhentas, mas de uma cidade calma, contudo com movimento; onde não haja barulho, mas não falte o comércio; onde os prédios não sejam nem demasiado altos que tapem o sol, nem demasiado baixos que deixem passar o vento; onde nunca faça frio e se fizer que poupe os lugares por onde ela é forçada a transitar.
A minha mãe descobriu, aos 81 anos, que a vida afinal não é exatamente como ela sonhou, ainda que na verdade nunca o tenha sido apesar de ela ter conseguido manter a crença de que um dia seria. Agora, parece-me a mim, desenganou-se.
Uma vez ouvi da boca de um médico uma expressão de espanto, ternura e admiração perante o enrubescer da face da minha mãe. Dizia ele que nunca tinha visto alguém com tantos anos, corar! É isso que sinto – uma enorme ternura. Não deixa de ser admirável que alguém que passou por tanto, que sofreu tanta desilusão, tenha conseguido preservar a inocência que nos deixa acreditar que tudo ainda há-de ser como nos sonhos. Os anos que ela poupou ao desalento!
Só espero que recupere a tempo de fazer as pazes com a vida, embora eu esteja convencida que provavelmente não precisará disso, não a sinto zangada, apenas desconfortada com o frio - e quem é que não está?! -, é que nos acontece a todos, mesmo que não nos apercebamos disso a idade ensina-nos muito mas vai-nos tirando a força para aquilo que não chegámos a aprender.
A minha mãe já não tem forças para grandes zangas, nem para grandes desilusões ou desalentos. Todas as forças que tem, guarda para combater este frio que não nos deixa e teima em entranhar-se-nos na pele. Todas as forças que tem, usa para redecorar a casa nova; para a reorganizar; para se adaptar e aprender a lidar com uma situação com que sonhou mas que afinal talvez não seja bem como nos sonhos agora, que se tornou realidade. Mas eu sei que valeu a pena esperar. Sei porque a minha mãe dorme bem, deixou de ter medo e só se encolhe quando sai para a rua e o vento e o frio lhe despenteiam os cabelos brancos, tão brancos como a neve que afinal não chegou a cair por cá.
E sei também que sempre que um sonho se transforma em realidade, apesar de sofrer alterações físicas nessa estranha passagem, continuará a ser sonho enquanto dele nos ocuparmos.

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