domingo, 18 de dezembro de 2011

Provocações

Quando comecei a descer a rua sabia de antemão que iria ter vários olhos postos em mim. De resto não sei até que ponto não pensei nisso quando decidi vestir aquelas calças brancas, justíssimas!, e aquele casaco pingão, cinzento claro, que me pendia dos ombros realçando a altura do pescoço. Sempre tive orgulho nos meus ombros e no meu pescoço. Considero que têm sido uma mais-valia. Quanto às socas, estavam na moda, eram pretas, de madeira e relativamente baixas.

Não me enganei. Quando cheguei à paragem estava exuberante! toda eu era brilho!
Um habitual companheiro de viagem pôs-se a meu lado e foi avançando a par à medida que a fila desaparecia na entrada do autocarro.

Foi durante esse percurso que aconteceu o que acredito ter sido provocado pelo excesso de ego que provavelmente me turvou a vista e me trocou os pés. A partir dessa ligeira troca nunca mais o dia foi o mesmo. Balancei, repetidamente, para trás e para a frente, trocando cada vez mais os pés mas fazendo tudo o que o meu ágil corpo e as minhas calças demasiado justas permitiam para manter um equilíbrio cada vez mais fugidio. E nesse cai-não-cai avancei alguns metros com o orgulho a impedir-me de esticar o braço para me amparar no vizinho da frente e sem que o meu companheiro me deitasse a mão evitando o pior, ou o vizinho de trás me segurasse.

E o pior aconteceu num voo que teria batido qualquer recorde em qualquer pista olímpica, terminando numa aterragem fenomenal que me transmutou as calças numa espécie de saia castanha sem panos à frente ou atrás, me esfolou consideravelmente cotovelos e joelhos e me obrigou a apanhar um táxi de volta a casa.

A minha mãe, quando abriu a porta e me pôs a vista em cima, convenceu-se que eu tinha sido vítima de atropelamento.

Nesse dia não saí mais de casa. Já lá vão mais de trinta anos, mas nunca mais me esqueci.

2 comentários:

Jardineiro do Rei disse...

FELIZ NATAL…
“E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!..., mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.”
(“Toada de Portalegre – José Régio”)

João

Sputnick disse...

A tua história fez-me lembrar um dia que também não mais esqueci - em que estava à espera do autocarro para ir para a António da Costa. Chegado o autocarro, antes de se imobilizar abre-se uma janela, de onde irrompe uma passageira aos vómitos. Imagina em cima de quem :) o resto conto-te depois :)))))