Tinha dezasseis anos quando o meu pai, vítima de um acidente cardiovascular, deu entrada num hospital, e depois noutro e noutro, até voltar para nós, escondido num outro corpo, tão escondido que eu, zangada com o mundo, com os homens e com ele, não fui capaz, nem na altura nem durante anos, de o encontrar.
Porque quando se perde algo desta dimensão não se aceitam substitutos, não se aceita nada mais, nada menos, do que o original que nos foi abruptamente roubado, a minha zanga perdurou e estendeu-se a áreas e gentes bem mais distantes. A zanga; a descrença, enfim tudo aquilo que se alimenta por quem se admira e se perde de repente como se o mais alto, mais belo e mais sólido castelo se desmoronasse com um sopro de vento porque não se sabe e nem se quer saber a dimensão do sopro ou dos estragos por ele causados. Só se sabe da desilusão. Da brutal e imensa, desilusão.
E durante anos vive essa dor escondida, espreitando de vez em quando. Doendo sempre. Desiludindo sempre. Desprezando, porque não? Não é isso que acabamos por sentir por quem assim nos desilude? desprezo?
Até ao dia em que o cansaço nos vence.
O cansaço é extraordinário porque é o único sinal verdadeiramente eficaz da imensa falta de respeito com que cada um se agracia sempre que não é capaz de respeitar a voz que lhe vem da alma.
E nesse dia, em que o cansaço me venceu, decidi saber, exactamente, o que se tinha passado – os danos; a sua extensão e os reflexos no dia-a-dia. Nesse dia, abri a pasta onde se guarda a única TAC feita muitos anos depois do acidente, li o relatório e, com as imagens e as palavras diante de mim, devorei toda a informação que consegui encontrar sobre o cérebro e o seu funcionamento.
Nesse dia, voltei a chorar. À piedade, encontrei-a ainda a tempo, perdida no meio da realidade que durante anos mascarei de uma outra mais fácil, mais imediata. Nesse dia reencontrei o meu pai e sei que tudo farei para que não nos voltemos a separar, porque nesse dia renasceu o meu respeito, a minha admiração e o meu amor.
3 comentários:
Ai Antígona, puxa pá, tocaste-me.
Bonito o teu texto. Muito mesmo. Toma sorrisos :):)
Lindo amiga. Mereces um abraço. É só ter-te por perto :):)
"nesse dia renasceu o meu respeito, a minha admiração e o meu amor."
O perdão adulto só é possível com a cabeça, mas só ganha raízes quando se enche de emoção. Obrigado mulher, filha. Parabéns mulher, mãe.
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