domingo, 11 de novembro de 2012

Isabel Jonet


Mais uma vez são tantas as verdades! Creio que o problema mesmo é a falta de precisão, de resto impossível a não ser que se usem dados oficiais, como estatísticas e coisas dessas, tão imprecisos quanto certas pessoas habituadas a movimentarem-se no seio de um determinado grupo e convencidas que o mundo é todo assim. Ninguém vê tudo. Ninguém sabe tudo. E isto não significa que, quando se fala, não se fale verdade. O meio de cada um é restrito e quando falamos e quando exemplificamos é com base nele que o fazemos.

Em Portugal sempre existiram pobres, mas há 50 anos atrás existiam muitos mais do que aqueles que existem agora. Após o 25 de Abril quisemos acabar com eles. Foi talvez o pensamento, a intenção, mais bonita que tivemos até hoje, e tratámos de oferecer a todos mais do que aquilo que podíamos. Talvez, quem sabe, tenhamos ambicionado substituir Salazar como pai da nação e tivéssemos querido mostrar a todos que todos podemos ser pais de todos e esquecemo-nos daquela regra básica da economia que dita que as despesas têm de ser inferiores às receitas se queremos gerir bem a nossa casa.

É claro que esse esquecimento, ao longo destes anos, mudou-nos a mentalidade e, sobretudo, moldou a mentalidade dos nossos filhos que nasceram e cresceram numa abundância que todos tomámos como certa. Mais! que todos tomámos como legítima.

Ontem, em conversa com o meu irmão a propósito de um novo emprego que ele arranjou e que o vai empurrar, ao fim de 20 anos, para os braços de uma entidade patronal (é preciso que se saiba que o meu irmão, que vive há 32 anos na Holanda, trabalhava por conta própria, mas a crise chega a todo o lado e obriga-nos, ou aconselha-nos, a mudar de vida), fiquei a saber, dizia eu, que na Holanda não existe, nunca existiu, subsídio de Natal e que o de férias não corresponde a um salário completo mas à poupança que cada trabalhador faz ao longo do ano com o salário bruto que recebe todos os meses! Prevenidos estes holandeses!...

Eu trabalho num meio pobre. Num desses meios que consideramos pobres. Com crianças que vivem em habitações clandestinas, no meio do mato, sem saneamento básico (não sei já há quanto tempo existem esses bairros, mas já têm nome e caixa postal). Se os virmos na rua, a sair da escola, percebemos que a única coisa que lhes falta é, talvez, a consciência da ilegalidade em que vivem porque, em tudo o resto, são iguais aos outros – ostentam os mesmos telemóveis, calçam os mesmos ténis e vestem as mesmas calças, salvo seja, evidentemente…

Alguns pais destas crianças não têm trabalho. Alguns dizem que são pescadores mas têm de fugir às autoridades sempre que vão à amêijoa porque lhes falta a autorização necessária para o fazerem. Alguns recebem subsídios.

Eu, por vezes, saio do meu canto e vou dar uma mãozinha na distribuição de alimentos aos sem-abrigo de Lisboa. Vou integrada numa associação que o faz há vários anos e, como é natural, vou ficando ao corrente do que se passa com este e com aquele que aparece regularmente nos locais habituais. Aliás, são quase sempre os mesmos e vêm quase sempre no mesmo estado. A pobreza é uma coisa que se entranha nas pessoas e é tão difícil sair-se dela como sair de um buraco escuro. Mesmo que alguém nos puxe para cima encadeamo-nos com a luz e perdemos a segurança que a escuridão nos dava. Muitas vezes voltamos para lá. Mas de cabeça erguida e voz de comando. Sim, porque nós, aqueles que lá vão de sopa na mão, não fazemos mais do que a nossa obrigação. Isso eles não nos deixam esquecer na forma como tantas vezes nos tratam.

À minha volta, neste bairro que habito tão classe média quanto possível, vêem-se carros de alta cilindrada que foram, e aí eu estava capaz de apostar o que não tenho, comprados com dinheiro do banco. E ontem num dos restaurantes da zona, não havia mesas vagas para almoçar. Aliás, não foi a primeira vez que isso aconteceu. Já no outro dia, quando por lá passei, havia gente à espera, à porta.

Tenho vários amigos que estão reformados há vários anos. Reformaram-se antes dos 50. Aproveitaram a oportunidade que lhes foi dada. Eu teria feito o mesmo se tivesse podido mas hoje, de mão na consciência, tentaria compreender se realmente mereço o que todos os meses me entra pela porta adentro sem estar a trabalhar e, provavelmente, estaria mais calada do que estão muitos que, na verdade, têm recebido mais do que aquilo que têm dado apesar de nós sentirmos sempre, e cada vez mais, que merecemos, que nos é devido e, no caso dos nossos filhos, até apenas pelo facto de termos nascido.

É claro que tudo isto é matéria para muita discussão. É claro que as reações dos sem-abrigo podem ser interpretadas à luz das teorias comportamentais e justificadas com a necessidade de se defenderem e manterem, assim, alguma dignidade. É claro que os carros de alta cilindrada e os empréstimos bancários podem ser justificados com as facilidades que os bancos, que vivem dos juros que cobram, ofereceram ao longo dos anos fazendo-nos acreditar que tudo é possível e que todos podemos, independentemente da dimensão da nossa contribuição. É claro que tudo pode ser justificado. Já temos teorias suficientes para isso.

Mas uma coisa é certa, e nisso Isabel Jonet tem toda a razão, – é urgente que aprendamos a viver com o que temos e, já agora, que comecemos a produzir um pouco mais.

5 comentários:

CF disse...

A Isabel Jonet tem razão em tudo o que disse. Os ouvidos das pessoas é que queriam ouvir outras coisas, mais fáceis, mais ligeiras, aquelas coisas que nos libertam de culpas que não queremos, mesmo que essas, sejam em grande parte nossas...

Ana PAula disse...

A Isabel Jonet não tem razão porque generalizou. Só pessoas que são priveligiados e nunca sofreram na pela a angustia de não ter dinheiro para fazer face às despesas do dia-a-dia é que é qu8e realmente entendem a tremenda injustiça que essa sra cometeu. Vocês devem ser de Lisboa e realmente aí devem todos ter uma boa vida, porque a minha realidade na região do Minho é bastante diferente. Há muita gente que poupou sempre e se lhe deram a possibilidade de comprar uma casa porque não. Estes "esbanjadores" não poderiam sonhar em ter algo de seu? Que direito têm vocês de os insultarem? Vocês realmente são muito mal acompanhados, polrque as pessoas com quem eu convivo diariamte são na sua maioria pessoas integras honestas trabalhadoras e solidárias. Mas isto é a minha realidade a vossa é a das fantasia, enfim...

Alda Couto disse...

Pois...minha cara Ana Paula, tal como eu comecei por dizer: existem tantas verdades! e raras são as que se encaixam em mais do que uma realidade. Não deixam de ser, por isso, verdades :). Fantasia é outra coisa. Fantasia é aquilo que nós imaginamos ser a verdade do outro :):)

Goldfish disse...

Eu vinha contestar um pormenor, depois li os comentários e vi que, realmente, existem tantas verdades... Tantas quantas as pessoas. E arrisco dizer que há outras tantas fantasias.

Sputnick disse...

Excelente texto Amiga. Quanto à Jonet, ela, mais que outros, deveria saber que há pensamentos, que a sair pela boca, só em plateia reduzida.
De resto, eu, tal como ela, também fui à Grécia, e se não vi pobreza, foi talvez porque também a não vi no Rio de Janeiro, evitando-a(s).