Quem foi educado durante o Estado Novo, no estrito cumprimento das suas regras, na plena absorção da sua moral, aprendeu que o mundo estava dividido em dois hemisférios.
Num dos hemisférios habitavam os agraciados por Deus; os que nasceram com o “cu virado para a Lua”; os poderosos; os instruídos; os chefes; os patrões; os abastados; os prósperos, e por aí fora que não me ocorrem, de momento, mais epítetos para tão nobres gentes.
No outro viviam os pobrezinhos; os remediados; os analfabetos; os ignorantes; os fracos; os operários; os subordinados; os malnascidos; os castigados; os desprotegidos; os humildes…
…e, para os proteger, estavam cá os outros, os primeiros, os que habitavam no outro hemisfério. Salazar era uma espécie de pai que incumbia uma espécie de paternidade a todos os habitantes “superiores”.
Assim, fazia parte da educação destes seres, a caridade. Não a caridade como hoje é vista, com compaixão, não. A caridadezinha. A caridadezinha era a forma mais sólida e “santa” de nos tornarmos num veículo do Senhor e, ao mesmo tempo, mantermos o status quo. “Com papas e bolos se enganam os tolos” dizia o povo ao mesmo tempo que os engolia e lambia os beiços.
O ensino estava lá para todos mas a vontade de Deus dizia que os pobres seriam sempre pobres e até, meu Deus, era pecado a vontade de deixar de o ser! Muito pelo contrário, conquistaria o reino dos céus todo aquele que se contentasse com o que Deus para ele tinha reservado. A palavra de ordem era – resignação.
Todos se resignavam, os mais nobres e os mais humildes, sendo que para uns era mais difícil do que para outros. Mas todos acreditavam, ou quase todos, que aquela era a vontade de Deus e que assim deveria ser o estado das coisas.
Havia emprego para todos os que queriam trabalhar. Eram poucos os qualificados e estou em crer que a maioria nem habitava por cá. Portugal era, sem dúvida, um país desqualificado. Mas havia emprego para todos os que queriam trabalhar. E até se conseguiam coisas simpáticas com meia dúzia de anos de escola já que “em terra de cegos, quem tem um olho é rei”.
Acontece que a educação se entranha na alma das gentes e leva gerações a dissipar-se. São precisos muitos anos de vida para se abarcar todas as modificações necessárias a uma mais justa partilha, a uma cisão de hemisférios.
Quem cresceu durante o Estado Novo, cresceu a acreditar que o segredo dessa cisão estava na instrução, por isso insistiu para que os seus filhos se instruíssem, que fossem para a faculdade, que lutassem por uma vida melhor porque, uma vida melhor conquistar-se-ia, sem dúvida, por via de uma maior instrução – O meu filho há-de ser Doutor! E havemos de sair desta miséria!
Não nos lembrámos então que o hemisfério dos desfavorecidos tinha uma densidade demográfica muito superior ao outro e que o número de empregos disponíveis não seria o suficiente para “encaixar” tantos letrados.
Hoje somos um país de gente classificada mas sem emprego. Hoje temos de inventar. Temos de ser criativos e temos, a nosso favor, um povo classificado. Um povo que já não quer ser “ajudado” com papas e bolos e que sabe distinguir a caridade da caridadezinha. Um povo que já não é cego, nem tão ignorante como era há 40 anos.
Um povo que tem consciência que, no outro hemisfério, o dos “agraciados de Deus”, ainda se acomodam alguns, enroscados nas suas velhas mantas, trancados a sete chaves, pedindo a Deus que o mundo não desabe e que não sejam forçados a partilhar o tanto que têm, investindo e criando os empregos que faltam e a riqueza que só nasce de um aumento significativo da produção.
2 comentários:
Cheia de razão, como sempre. Sorrisos para ti :)
Bravo, Antígona!!!
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