Entornar vinho é alegria. Pisar dejetos caninos, dinheiro. Atribuímos
benfeitorias às coisas chatas e, muitas vezes, avançamos azares a coisas tão
inocentes como passar debaixo de uma escada ou deixar que as facas se cruzem.
Nesta linha de raciocínio, digo eu porque posso, entendemos
encontrar graças e convenientes vantagens naquilo que designámos “famílias
alargadas”. Que giros que são os meus, os teus e os nossos e aqueles que não
são bem irmãos mas irmãos de irmãos e primos de primos, famílias tão extensas e
diversificadas e distantes que dificilmente caberão numa só casa em épocas de
culto como, por exemplo, o Natal.
Graça mesmo só encontram aqueles a quem convém, de uma forma
ou de outra, esse estado de coisas, porque nunca ouvi nenhuma criança ou
adolescente regozijar-se com a separação dos pais e aceitar de ânimo leve
madrasta e padrasto sem um mínimo de resistência ou uma dor bem escondida no
centro do coração. Geralmente dão adultos resignados que não perdem uma
oportunidade de recordar como as coisas eram “quando éramos uma família”.
Para essas pessoas não existem famílias alargadas. Existe perda
e separação. Desmembramento e dor.
Por vezes, quando a coisa se dá muito cedo e cedo se forma
uma outra família que cria e acolhe como se nada, ou quase nada, se tivesse
passado, a coisa compõe-se. Ainda assim, mais ou menos, porque em nenhuma
circunstância se apagam as perguntas sem resposta, os “porquês” e os “comos” –
ninguém substitui um pai e uma mãe que se amam e criam, juntos e até ao fim, os
filhos que geraram.
Posso não ter aprendido muito, mas isso eu aprendi. São
dores que não passam nunca. Despiques que não cessam. Vontade de partir os
filhos ao meio, esta metade é minha, esta é tua. Ciúmes que roem. Invejas que
tentam a todo o custo respirar.
Não, não é verdade que o vinho entornado em dia de festa
seja alegria. Na verdade é uma merda e um trabalhão – uma interrupção; um
corte. E quanto ao pisar dejetos caninos, hão de me dizer quantos ou quantas
enriqueceram depois disso. A não ser que o segredo esteja na conservação dos
mesmos na sola do sapato. Só se for isso. Mas, a julgar pelas pedras que vamos
deixando saltar cá para dentro ao longo da vida, eu diria que essa não é,
seguramente, uma solução credível.
1 comentário:
Amiga, se essa crença dos dejectos fosse verdade, acredita que, graças às minhas três cadelas, já estaria milionário :)))
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