É de Julho, mas vale a pena ler e reler. Pode ser que nos acalme um pouco e nos ajude a desacelerar em 2011.
«Sem tempo, nem paciência!...
por Manuel Maria Carrilho, Diário de Notícias, 29.07.2010
«Sem tempo, nem paciência!...
por Manuel Maria Carrilho, Diário de Notícias, 29.07.2010
Se há ideia com que se tenha identificado a evolução técnica e tecnológica do último século, foi sem dúvida com a da promessa que ela propiciaria mais tempo à humanidade, libertando-a de diversas pressões que condicionam a vida quotidiana dos indivíduos.
E contudo, apesar da proliferação dos inventos que substituem o trabalho humano, e da multiplicação das inovações tecnológicas que permitem fazer tudo mais depressa (fax, Internet, telefone portátil, etc.), que tornaram possível que hoje se trabalhe metade do que se trabalhava há cerca de cem anos e se viva muito mais longamente, é exactamente o contrário que se verifica: vivemos hoje com a noção de, afinal, não ter tempo para nada…
Tudo se passa como se uma lógica mais forte se impusesse a todas essas ilusões, contrariando-as. E essa lógica existe, é a da aceleração: isto é, a de um aumento constante da velocidade que, na perspectiva do sociólogo alemão Hartmunt Rosa (autor de um magistral estudo sobre a aceleração), se tornou num traço central dos tempos modernos, que se tem vindo constantemente a intensificar.
Uma aceleração que começou por ser técnica e incidir nos meios de transporte. Que depois alterou os ritmos de produção e as características das relações colectivas, atingindo todos os modos de vida. E que por fim se tornou social e cultural, transformando-se um imperativo constante que atravessa todas as actividades humanas, sejam elas profissionais, pessoais ou políticas.
Uma boa imagem deste facto encontra-se, como lembra H. Rosa, na circunstância de se terem passado 38 anos entre a invenção da rádio e o momento em que a sua difusão atingiu os 50 milhões de aparelhos, enquanto bastaram três ou quatro anos para a conexão à Internet atingir a escala das centenas - e, depois, dos milhares - de milhões.
É a aceleração que, a nível subjectivo, se encontra na raiz do stress, da hiperactividade, da depressão, pelo modo como ela bloqueia o desenvolvimento de qualquer projecto individual. É a aceleração que, como Maggie Jackson explica num livro extraordinário, Distracted, provoca a erosão da nossa capacidade de atenção, seja de concentração em algo, seja em relação às mudanças que ocorrem à nossa volta, seja ainda de adaptação a essas alterações. É a aceleração que multiplica simultânea e contraditoriamente os apelos de urgência e os comportamentos reactivos, estropiando o tempo de reflexão necessário à decisão esclarecida e eficaz nos domínios económico, social ou político. É a aceleração que conduz à consagração do curto-termismo, como se ela fosse na verdade, na bela expressão de Milan Kundera, o único êxtase do homem moderno.
A aceleração dilui a percepção do tempo, condenando-nos a viver num presente perpétuo em que os acontecimentos se multiplicam na razão inversa da compreensão do seu sentido. A torrencial multiplicação dos pontos de vista tem como único efeito seguro o de privar o homem contemporâneo de qualquer perspectiva consistente sobre o quer que seja.
O curto-termismo, que decorre automaticamente desta aceleração e se impõe em todas as vertentes da vida contemporânea, é o que melhor define a mutação radical que ocorreu na nossa relação com o tempo. É ele que nos priva de qualquer horizonte onde se possam instalar verdadeiros projectos de vida, individuais ou colectivos. É ele que cria novas formas de irresponsabilidade, como se tem vindo a observar no decurso da crise financeira, com a cínica generalização da máxima "I'll be gone, you'll be gone". É ele que fragiliza todos os processos de deliberação, colocando-os sob a pressão das urgências mais diversas. É ele que estropia a atenção à complexidade das sociedades contemporâneas, impondo-lhes um registo de instantaneidade e de imediatismo de natureza suicidária. É ele que empurra todas as actividades humanas para o modelo do turboconsumo e das múltiplas dependências que ele cria.
Vivemos, em suma - a analogia é de J.L. Servan-Schreiber, no livro Trop Vite -, como se nos deslocássemos de noite num automóvel cuja velocidade aumenta à medida que o alcance dos faróis diminui. É por isso que, mesmo em férias, se torna tão difícil desacelerar? Habituados que estamos, por um lado a viver como se a velocidade por si só desse sentido à vida e, por outro lado, a associar a aceleração com a intensidade, é cada vez mais comum reagirmos com ansiedade a qualquer vislumbre de lentidão e identificarmos a mais pequena desaceleração com uma assustadora ameaça de tédio. Como se, quando finalmente há tempo, faltasse a paciência? »
E contudo, apesar da proliferação dos inventos que substituem o trabalho humano, e da multiplicação das inovações tecnológicas que permitem fazer tudo mais depressa (fax, Internet, telefone portátil, etc.), que tornaram possível que hoje se trabalhe metade do que se trabalhava há cerca de cem anos e se viva muito mais longamente, é exactamente o contrário que se verifica: vivemos hoje com a noção de, afinal, não ter tempo para nada…
Tudo se passa como se uma lógica mais forte se impusesse a todas essas ilusões, contrariando-as. E essa lógica existe, é a da aceleração: isto é, a de um aumento constante da velocidade que, na perspectiva do sociólogo alemão Hartmunt Rosa (autor de um magistral estudo sobre a aceleração), se tornou num traço central dos tempos modernos, que se tem vindo constantemente a intensificar.
Uma aceleração que começou por ser técnica e incidir nos meios de transporte. Que depois alterou os ritmos de produção e as características das relações colectivas, atingindo todos os modos de vida. E que por fim se tornou social e cultural, transformando-se um imperativo constante que atravessa todas as actividades humanas, sejam elas profissionais, pessoais ou políticas.
Uma boa imagem deste facto encontra-se, como lembra H. Rosa, na circunstância de se terem passado 38 anos entre a invenção da rádio e o momento em que a sua difusão atingiu os 50 milhões de aparelhos, enquanto bastaram três ou quatro anos para a conexão à Internet atingir a escala das centenas - e, depois, dos milhares - de milhões.
É a aceleração que, a nível subjectivo, se encontra na raiz do stress, da hiperactividade, da depressão, pelo modo como ela bloqueia o desenvolvimento de qualquer projecto individual. É a aceleração que, como Maggie Jackson explica num livro extraordinário, Distracted, provoca a erosão da nossa capacidade de atenção, seja de concentração em algo, seja em relação às mudanças que ocorrem à nossa volta, seja ainda de adaptação a essas alterações. É a aceleração que multiplica simultânea e contraditoriamente os apelos de urgência e os comportamentos reactivos, estropiando o tempo de reflexão necessário à decisão esclarecida e eficaz nos domínios económico, social ou político. É a aceleração que conduz à consagração do curto-termismo, como se ela fosse na verdade, na bela expressão de Milan Kundera, o único êxtase do homem moderno.
A aceleração dilui a percepção do tempo, condenando-nos a viver num presente perpétuo em que os acontecimentos se multiplicam na razão inversa da compreensão do seu sentido. A torrencial multiplicação dos pontos de vista tem como único efeito seguro o de privar o homem contemporâneo de qualquer perspectiva consistente sobre o quer que seja.
O curto-termismo, que decorre automaticamente desta aceleração e se impõe em todas as vertentes da vida contemporânea, é o que melhor define a mutação radical que ocorreu na nossa relação com o tempo. É ele que nos priva de qualquer horizonte onde se possam instalar verdadeiros projectos de vida, individuais ou colectivos. É ele que cria novas formas de irresponsabilidade, como se tem vindo a observar no decurso da crise financeira, com a cínica generalização da máxima "I'll be gone, you'll be gone". É ele que fragiliza todos os processos de deliberação, colocando-os sob a pressão das urgências mais diversas. É ele que estropia a atenção à complexidade das sociedades contemporâneas, impondo-lhes um registo de instantaneidade e de imediatismo de natureza suicidária. É ele que empurra todas as actividades humanas para o modelo do turboconsumo e das múltiplas dependências que ele cria.
Vivemos, em suma - a analogia é de J.L. Servan-Schreiber, no livro Trop Vite -, como se nos deslocássemos de noite num automóvel cuja velocidade aumenta à medida que o alcance dos faróis diminui. É por isso que, mesmo em férias, se torna tão difícil desacelerar? Habituados que estamos, por um lado a viver como se a velocidade por si só desse sentido à vida e, por outro lado, a associar a aceleração com a intensidade, é cada vez mais comum reagirmos com ansiedade a qualquer vislumbre de lentidão e identificarmos a mais pequena desaceleração com uma assustadora ameaça de tédio. Como se, quando finalmente há tempo, faltasse a paciência? »
In http://dn.sapo.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1629529&seccao=Manuel%20Maria%20Carrilho&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco#AreaComentarios (visionado em 28-12-10)
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