segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Range Rover


Dei de caras com o velho jeep - chamo-lhe jeep como chamo kispo a todos os casacos acolchoados e impermeáveis que tenham capuz. Manias antigas, do tempo em que as coisas eram tão raras que chegavam sem nome próprio. Só traziam o apelido. 

Pois, dizia eu que dei de caras com o jeep. Exatamente o mesmo de há…sei lá…vinte anos p’rá aí… Esmurrado do lado esquerdo, o farol traseiro inexistente, a pintura baça. E pensei, Como as coisas mudam!

Recordei aqueles tempos áureos em que transportava pranchas e para-pentes no tejadilho. Em que carregado de bicicletas rumava ao Parque das Nações e aguardava pacientemente a família que por lá passava o dia a dar ao pedal.

Como as coisas mudam! E que triste que é quando mudam para pior. Quando são os tempos áureos que ficam para trás e não o contrário que deveria ser sempre a ordem natural das coisas – começa-se de baixo e ascende-se. É assim que deve ser sempre – começa-se de baixo e ascende-se. Luta-se. Estuda-se. Trabalha-se. E ascende-se.

Mas não. Não. Nem sempre. Não aqui, neste país. Cada vez menos. Aqui descende-se. Perde-se. Anda-se “de cavalo para burro” ainda que se trabalhe mais ainda, que se estude mais ainda, que se lute mais ainda. Descende-se.

E o velho jeep lá estava, parado, à espera do mesmo dono que há cerca de vinte anos, mais coisa menos coisa, o conduz. Já não tão feliz, já não cheio de crianças e pranchas e para-pentes.

2 comentários:

CF disse...

:( :(

Jardineiro do Rei disse...

O teu Post, Antígona, fez-me recordar, Antígona, este poema de Alda Lara:

Prelúdio

Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra, desce com ela...

Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos,
nas suas mãos apertadas.

Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...

Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?...
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...

Mãe-Negra não sabe nada...
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!...

É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.

É a tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada...

(Alda Lara)

Um sorriso