sábado, 23 de julho de 2011

Entre a indignidade da vida e a dignidade da morte (aos senhores guardadores da vida)

Não são a maioria mas eu diria que são muitos os que perdem a razão. Chamam-lhe demência. A uns atinge apenas o cérebro e eles deambulam por átrios e corredores mastigando frases sem sentido e injúrias obscenas. Às vezes gritam, outras dir-se-ia que rezam, tão baixo é o seu murmúrio.

Outros há que nada em si escapou e, pasme-se, permanecem deitados, sem vida maior do que o olhar vago que pousa sempre ao lado do espectável e dos braços que por vezes gesticulam violentamente para agarrar e enxotar o que querem e não querem – um braço; uma colher…

Os guardadores da vida injectam-lhes vitaminas diluídas numa sopa, que por via delas saberá provavelmente sempre ao mesmo. Diz que é para as escaras. E enfiam-lhes essa papa pela garganta abaixo a despeito do franzir dos cenhos, do ar de repulsa e do gesticular dos braços. Chega a ser uma batalha, a hora da refeição!

Fugir da morte; adiá-la o mais possível, eis o objectivo! Eu sou pela vida! dizia-me uma das assistentes, Eu sou pela vida!

Eu também. Sou pela vida.

E como para mim a vida está muito para além do respirar, que fique bem claro que eu, no meu perfeito estado de lucidez, não autorizo ninguém a “lutar” pela minha vida, seja de que forma for – seja com máquinas, bolos ou sopas atulhadas de pó vitamínico que as engrossa e lhes dá um sabor tão peculiar e igual, sobretudo igual.

E como a morte para mim faz parte da própria vida, não vivo, nunca vivi e dificilmente viverei na ânsia de a contornar, de a enganar, de a adiar ou mesmo de me libertar da sua lei ou de a arrancar do seu trono de rainha das certezas. Nem sequer anseio a eternidade porque acredito que ela já existe em mim, faça eu o que fizer. E estando ela em mim, não me faz grande mossa se a memória do que fui perdurar muito ou pouco naqueles que por cá ficam. Contudo, interessa-me a qualidade dessa memória. E a lembrança de alguém demente, deitado numa cama, a fazer cocó na fralda, sem falar, sem ver, sem ouvir, estando cá mas já não estando, não é, de todo, a lembrança que quero deixar.

2 comentários:

CF disse...

Bonito texto Antígona. A convivência muito de perto com essa fase da vida, leva-nos para esses e outros caminhos internos. Certezas que já tínhamos, mas que vamos reiterando. Concordo contigo, claro. A 100%.

Sputnick disse...

Sei do que falas, e o pior é que na esmagadora maioria dos casos, se vive esse drama no acompanhamento quase omnipresente das pessoas que amamos.