segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Indiferenças

Nós não somos, obviamente, indiferentes às desgraças alheias. Se olhamos a miséria de lado é porque ela nos aterroriza e isso, ao contrário do que possa parecer, humaniza-nos.


Lembro-me muitas vezes de uma história que ouvia contar quando era miuda:


Em tempos que já lá vão, um homem percorria, coxeando, a baixa lisboeta. Entrava em todos os estabelecimentos e escritórios. Era reconhecido por todos os que julgavam conhecê-lo e todos, ou quase todos, lhe depositavam o que podiam na palma da mão que ele estendia em concha, mirando-lhe de lado a perna torta e murcha, arrastada por um pé mais morto do que vivo. Vinha sempre à mesma hora - pela manhã, quando tudo estava ainda sonolento. E desaparecia muito antes dos almoços começarem a ser servidos. Muitos se perguntarão porquê, porque é que o homem não aproveitava a hora de ponta. Não se sabe. Não aproveitava. E os empregados dos restaurantes agradeciam, dando-lhe as boas vindas aos pequenos-almoços.


Um dia, nunca se soube porquê, o homem atrasou-se. Batia o meio-dia quando virou a esquina, esbarrando com alguns comensais mais esfomeados, daqueles que fecham as portas dos gabinetes cinco minutos antes da hora. Assustado com o inesperado encontro, o bom homem endireitou a perna torta, fincou bem o pé no chão e desatou a correr como se não houvesse amanhã.


A sorte dele foi ter tido o bom senso de não voltar a aparecer por aquelas paragens onde, durante anos, foi humanamente sustentado por piedosos cristãos, porque sei, de fonte segura, que a indignação foi dando lugar à humilhação e esta à raiva de "ter sido comido" durante tanto tempo sem nunca ter suspeitado sequer! "O sacana dava um excelente actor. Andam por aí muitos talentos perdidos!"


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