Era uma tarde como tantas outras. Os nossos cotovelos descansavam em cima da mesa onde jaziam, ainda, os ossos do frango e o resto da açorda. Falava-se de empregos, de oferta, de procura, de esforço, e o meu pai, na sua afasia, recordava. Eu era ainda pequeno. E mostrava-nos, com a mão, a sua altura. Chumbei e o meu pai pôs-me a trabalhar no Bairro Alto. E o que fazia, perguntava eu. Eu, e mais uma vez com as mãos o jeito da vassoura. Era pau para toda a obra, acrescentava a minha mãe. E ele ria. Estudava de noite. O meu pai, dizia ele, dava-me dinheiro para o eléctrico mas eu ía a pé. Corria. E guardava o dinheiro. E a mão dele a enfiar-se no bolso para que todos nós compreendêssemos o gesto de guardar. E continuava - Corria desde o Caramão da Ajuda até Alcântara. Todos os dias passava por uma rapariga que estava à janela, e ela... Ela o quê, perguntávamos nós, suspensos na nossa curiosidade. Ela batia palmas, e as mãos dele a juntarem-se num esforço. Uma aberta, a outra irremediavelmente fechada. E ria.
O neto, de casaco já vestido, pronto para sair e cheio de pressa, estava de pé, preso ao relato.
E o meu pai, com todos os olhos presos nele, soltava uma alegria que é quase única. A alegria de quem está rodeado por quem o ama tanto que nem se apercebe do tempo que cada memória leva para se transformar nas palavras que a lêem. A alegria de quem está rodeado daqueles que têm todo o tempo do mundo para o ouvir.
1 comentário:
Muito lindo. Mesmo.
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